quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014



   Crendice

“... e a luz se fez na sua memória.”

         Gabriel Garcia Marques


É hora de mudança, renovação, nascimento. Foi de uma mulher pura, virgem, sem o conhecimento das maldades do mundo que o filho do homem se fez carne:
 “Eis a escolha.”

De família pobre, não se demorou a ser reconhecido pelos argumentos lançados aos doutores da política. Tornou-se o escolhido:
“Eis a descoberta.”

Da adolescência, pouco se sabe. Entretanto alguns estudiosos arriscaram em afirmar que para não o expor ao mundo, seria necessário prepará-lo. Os professores de um país conturbado transferiram conhecimentos.
 “ Eis a preparação.”

Adulto junto com outros pobres aparece com roupas  simples, calçando alpercatas, dominando a palavra. Palavra usada por metáforas, cuja interpretação àqueles de pouco conhecimento era cativante, desafiadora.
Eis a mensagem.”

A cada dia mais adeptos a divulgarem a palavra: “diminuição da pobreza, eliminação da fome.”

 “Eis o porquê.”

Os especuladores, os que vivem da exploração, os que visam lucros desenfreados, 
“Eis o amanhã.”

A palavra voltada à geração de emprego, produção, lucro. Estava afastada a hipótese de prejuízos. Os que não o aceitavam cederam, recuaram. Apoiar a idéia?

“ Eis a dúvida.”

O Natal veio festivo; a árvore plantada continuava a crescer tornando os galhos mais fortes, a copa mais sombria, as flores e os frutos mais vigorosos; a distribuição foi farta; a estrela no topo da árvore brilhava cada vez mais ao receber energia. Energia gerada por todos aqueles que acreditaram.

“Eis a ilusão.”

Nos anos seguintes os acertos e desacertos afastaram a esperança depositada. 

“Eis a realidade.”

E o povo continuou no aguardo do prometido.

“Eis a questão.”

      * * *
 Embarcações


No mar da vida ao enfrentar  tempestades seja vitorioso. 
Na parede a pintura de um barco trouxe-me lembranças da adolescência. Majestoso, aguardava-me nas águas do mar de Olinda. Juntos, íamos na busca de sustento. Quantas vezes isto aconteceu, não sei. Há muito e por muito tempo esta rotina foi trabalho, distração, vida. Aos quinze anos recebi um barco de tios que viviam da pesca. Por um período de um ano, quase todos os fins de semana, ia conferir o andamento, ver detalhes da sua construção, pensar nas cores: Queria azul, vermelha e cinza. No dia em que ele me foi entregue, o batizei com o meu pré-nome: Patrício. Assim criei a identidade. Não me perguntem  porque. Talvez no decorrer do conto, consiga transmitir o que na época não enxerguei.
Órfão, aos dez anos fui morar com os tios. Passava uma temporada na casa de um, ia para a casa do outro; deste modo, cresci. Sobre o mar assimilei tudo o que me ensinaram. Quando voltava cedo da pescaria, ia à escola. Nesta luta, consegui terminar a oitava série. De poucas amizades, sempre gostei de ficar só. No mar podia dizer, pensar, agir. Algumas vezes, falava e o barco respondia em meu segundo pensamento. Numa dessas ocasiões:
- As ondas lembram seres humanos. Você nota semelhança?
“Sim. Olhe esta: forte, alta, vem com arrogância. Se impõe pela força, pelo barulho ao quebrar, na vontade de dominar-nos.”

Respaldados pela experiência, enfrentávamos de proa, sem medo. Passávamos por cima como se nada nos tivesse atingido. Víamos ao longe, á beira mar, se desmanchar em espuma. Voltava branda reunindo energia, se agrupando para uma nova investida. Batiam de frente com força, porém nunca conseguiam derrubar-nos. Outras passavam suaves, pareciam harmoniosas. Pareciam cumprimentar-nos:

- Veja como o mundo poderia ser diferente: Homem e barco unidos para enfrentar a vida tendo conhecimento de que as ondas são para você o que o ser humano é para mim.

E, o escutei dizer:

“Está enganado. Ondas só demonstram temperamento: forte, fraca, ausente. O ser humano vai muito além. Tem inteligência, astúcia, ignorância, traição. Basta se determinar por querer. Quando enfrenta as ondas, logo define o modo de agir. Coloca-se em posição de defesa. As ondas não. Sempre apresentam as mesmas formas; por isto, jamais o coloquei em risco. Todo dia enfrentamos o alto mar. Passamos por momentos difíceis sim, não podemos negar, entretanto sempre os superamos.”
- Você tem razão. Por sermos previsíveis, torna-se mais fácil lidar com elas. O sucesso estará garantido se conhecermos as condições de navegabilidade e tivermos boa intenção. “Com o ser humano a coisa é outra. Sempre surpreendendo.”
- Concordo, para decifrarmos o que quer, demanda tempo. Às vezes, nem conseguimos. E aí passamos pela vida sem viver, fazer, ou ser.

Hoje, impedido de velejar, lembro-me das idas e vindas que fazia. Estou feliz. Tenho casa, mulher e filhos já independentes. Nenhum seguiu a profissão de pescador. As histórias contadas, talvez os tenha influenciado a seguir por outro caminho diferente do meu. Não interferi na escolha. Tiveram livre arbítrio. De tudo isto, tenho convicção de que:

“Cada um tem seu barco e seu mar.”


* * *

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Brilho da Escuridão


“A flor do campo floresce apenas por uma hora e, no entanto, ela não difere em essência do gigantesco pinheiro que vive uma centena de anos.”

     Teitoku Matsunaga



Fim de tarde. Pedro e Paulo desciam o Rio Sanhauá num pequeno barco. Era a hora de recolher os covos deixados no dia anterior. A pesca conduzia tio e sobrinho numa aventura cheia de surpresas.
A água cortada pelo barco respingava obrigando-os a fecharem os olhos. A velocidade fazia a vegetação ribeirinha tomar formas diversas. Sentiam-se soltos, livres.
Um pouco à frente reduziram o motor. Precisavam deixar o curso principal do rio para entrar no emaranhado de canais formados pelo mangue. As raízes aéreas lembravam estacas de cercas vivas. Qualquer manobra indevida poderia por fim a aventura e a pescaria. Paulo manobrava em zigue-zague, com cuidado, até chegar a um grande círculo formado pela vegetação. Este era o lugar preferido para trocarem os covos. Para não espantar os peixes, desligaram o motor. A embarcação deslizou em silencio no comando do leme.  Dos dez covos, cinco, estavam vazios, mas, ainda assim, conseguiram alguns peixes. Entre eles um camurim com quarenta centímetros. Gritos seguidos de palavrões se fizeram ouvir quebrando o silêncio, afugentando os peixes.
- Paulo cala esta boca. Assim os peixes se afastarão.
- Esqueci tio.

O dia escurecera quando o último covo foi instalado. A vegetação, antes verde, perdia a cor, misturava-se ao cinza, ao preto, ao invisível, ao nada. O caminho da volta, estreito, assombroso; aflorava o medo.
Pedro sentia a responsabilidade pesar. Conduzir a embarcação por entre as raízes, que lembravam formas humanas, com longas pernas e braços, era tarefa difícil. Havia necessidade de se descontrair para não passar insegurança a Paulo:
- Nunca ficamos no escuro. Esta foi minha primeira vez. No ano passado não foi assim. Quando chegávamos próximo ao ancoradouro escureceu, lembra-se, Pedro?
- Não me diga que agora está com medo?
- Não, não estou. É que não enxergo nada. Você está vendo alguma coisa?
- Não tenha medo, daqui a pouco se acostuma e vai enxergar melhor. Conheço isto aqui como a rua que moro. Vamos já sair daqui.

Ao virar a chave, o motor não pegou. Várias foram as tentativas mas sem sucesso:
- Vamos aguardar mais um pouco Paulo. O motor está encharcado, tem gasolina demais no carburador. Enquanto não evaporar, não pega. Agora que não temos o que fazer vamos olhar para o céu e tentar identificar as estrelas, como fazia nosso avô, está lembrado?
- Estou sim.
- A noite vai ser das boas. Sem lua e sem nuvens do jeito que está será divertido para descobrirmos os planetas e as constelações, você vai ver.

O piscar das estrelas estava cada vez mais forte. A cada momento surgia um novo ponto luminoso. O escuro estava invadia claro: o brilho da escuridão tomava conta da noite:
- Pedro, por que as estrelas aqui brilham mais que na cidade?
- A iluminação do povoado por aqui ainda é fraca. Quem clareia é a luz das estrelas e a Lua, quando recebe luz do Sol. Está vendo aquelas quatro estrelas em forma de cruz. A que fica entre o braço direito da cruz e a de baixo é bem menor do que as outras. Está vendo?
- Estou.
- Chama-se “Intrometida”. Juntas, formam a constelação “Crucis”. Aqui no Brasil é conhecida por “Cruzeiro do Sul”. Se você imaginar uma linha reta, saindo da estrela mais baixa até o ponto de encontro com a Terra, você encontrará o Sul. É muito importante saber disso. Ela serve para nos orientar sobre os quatro Pontos Cardeais, ou seja: onde fica o Norte o Sul, o Leste e o Oeste. É muito útil para quem gosta de navegar ou fazer explorações nas matas.
- Como é que vou saber pra que lado fica o Leste e Oeste?
- Ah! É muito fácil. Se ficar de costas para o Sul, a sua frente ficará o Norte, à direita o Leste e a esquerda o Oeste. Entendeu?
- Entendi.
- Está vendo aquele outro punhado de estrelas. Um pouco mais para o Oeste. Está vendo?
- Estou.
- É outra constelação. Chama-se “Escorpião” por ter a forma de um grande escorpião.
- Estou vendo, não.
- É difícil de ver. O Cruzeiro do Sul é mais fácil. Deite-se no barco. Continue a olhar para o céu. Vou lhe contar uma história enquanto a gasolina vai secando:

“Certa vez um menino saiu com o seu cão para um passeio de barco. Ao chegar num local como este, desligou o motor, ancorou a embarcação e foi pescar de anzol. O silêncio e o calor da tarde, foram suficientes para fazê-lo adormecer em sono profundo. Então sentiu que seu corpo deixava o barco e flutuava em direção às estrelas como se estivesse voando, subindo no espaço. Cada vez distanciava-se mais da terra. De repente olhou para baixo e se espantou. Ele continuava no barco com o seu cão, viu as margens do rio, viu a vegetação de mangue que se espalhava pela região e ficou nervoso. Voltou a olhar para cima. Queria ter a certeza de que ainda voava. Tornou a olhar para baixo. Desta vez o barco estava menor do que a palma da mão. As margens do rio e toda as praias estavam bem definidas. A medida em que demorava em observar um detalhe, os outros já vistos, minutos antes, tornavam-se menores. Chegou um momento que deixou de ver o rio, de se ver, de ver o barco, o cachorro. Via apenas uma bola azulada. Era a terra vista do universo. E teve uma sensação de ser uma nave espacial em pleno universo onde meteoros, cometas, constelações passavam a sua frente. Ficou deslumbrado e temeroso ao mesmo tempo. Sentiu medo, pavor. Voltou a olhar para baixo e, numa velocidade assombrosa começou a descer, a perder altura. Avistou de novo a Terra, o mapa das Américas, o do Brasil, o rio, as margens, o barco, o cão e ele mesmo. Assim como num filme ele voltou ao tamanho real. Preocupado olhou para todos os lados e em dado momento sentiu a palma da mão quente e olhou para ela. Viu, então, os poros crescendo. O sangue correndo dentro das veias. E de novo teve a sensação que deslizava num barco em um rio de águas vermelhas. O barco percorria os canais que eram as veias, as artérias. As vegetações avermelhadas, amareladas, raízes densas, raízes aéreas cheias de cavernas a se abrir e fechar num movimento contínuo o deixava atordoado. De repente a água vermelha escura do rio, cedeu lugar a vermelha, escarlate. Então ouviu um barulho forte seguido de uma cachoeira de água de diversas cores como um arco-íres que o levou a outro lugar. Era como o céu. Estrelas, planetas, constelações tudo minúsculo, tudo reduzido. Tão bonito como o que viu minutos antes. E não se contendo disse: Tem um céu dentro da gente? E acordou.
- Paulo, você escutou? Não acredito!
- Hein! O que?
- Ah! Deixe pra lá.


* * *

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014


Ausência

De volta à sala de espera do hospital onde deixara Porfírio, não o encontrou. Esperou um pouco. Talvez ele pudesse ter ido a algum lugar ali perto, tipo lanchonete, sanitário, mas logo apareceria. Nesse ínterim lembrou-se que recentemente Santiago lhe dera um celular. Tentou ligar e, para sua decepção, se encontrava em caixa de mensagem. Voltou ao escritório de Lucas. A secretária lhe falou que esperasse, ele não iria se demorar.
As horas custaram a passar. Aparecida embora lendo numa revista um artigo de Santiago, estava impaciente. Levantava-se, bebia água, tomava café. Os pensamentos voltados ao que poderia ter acontecido com Santiago.  “Onde poderia estar? O que estaria fazendo?” Já escurecia quando Lucas entrou no escritório:

− Aparecida você não vai acreditar no que aconteceu.  Hoje pela manhã mais um rapaz entrou em coma. Algumas pessoas que conversavam com ele na sala de espera disseram que não demonstrava nenhum sinal de doença. Pelo contrario, falava com desenvoltura e parecia feliz. Comentou sobre a cidade onde morava, e sobre o modo de se viver no interior.
−Ele estava na sala de espera?
− Estava.
− Ele era moreno claro e vestia calça jeans e camisa cinza?
− Vestia sim. Aparecida, você o conhece?
− Deus queira que não seja quem penso que é. Você sabe o nome e se a secretaria ficou com os documentos dele?
− É Antonio Porfírio da Anunciação. Eu mesmo vi os documentos dele na secretaria.
−Deus do céu!  Não posso acreditar. Ele veio comigo e trabalha com a gente.
− Não me diga uma coisa desta!
− Pois é verdade. Lucas, por favor, me leve agora mesmo à UTI.
− Vamos. Eu faço questão em lhe acompanhar.
Ao se aproximar dos leitos protegidos por cortinas, afixada numa etiqueta estava o nome completo de Porfírio. E no espelho da cama uma prancheta com os dizeres:
Batimento cardíaco: normal
Diagnóstico: estado de Coma
Causa: desconhecida


* * *

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Conto do Conto


 
 Conto do Conto

Há quem considere beber, comer, dançar, transar, fumar, relaxar e dormir como as sete maravilhas. Eu acrescentaria mais duas: ler e escrever. apesar destas últimas serem atividades que fazemos desde criança, poucos são os viciados. Estes, ficam aborrecidos se alguém os interrompe para alguma coisa. Querem mesmo é ler ou escrever.
Ao me aposentar, pensei que teria a satisfação de fazer o que bem entendesse: Riscar do calendário datas e horários, não me preocupar com nada, só ler e escrever.
No entanto, a família vendo o quanto estava ocioso, logo me arranjou um emprego na firma “JAQTÁ”, sem remuneração, lógico: Me dizia a esposa: “Querido, já que está sem fazer nada, vá ao banco, depois ao supermercado e, se tiver tempo, pague, na casa lotérica, as contas de água, luz e telefone. Caso tenha tempo, no horário da tarde vá à Fundação tirar uma guia médica.
Durante o dia, o tempo voava. A programação, por mais calculada que fosse, sempre era falha. Sobrava a noite. Ah! A noite. Essa era minha. Ninguém iria me importunar.
Após o jantar, tomava um banho, vestia o pijama sentava diante do computador. Para não ser incomodado, dei a televisão do quarto à sogra, devido a esposa só dormir com ela ligada. Nunca vi um sedativo tão bom. E se for na hora das novelas Globo o efeito é mais rápido. Agora sim, estava finalmente a sós. Eu e o computador. O computador e minhas idéias. Dedos no teclado esperei surgir a primeira frase. Mas, por onde iniciar? Ainda não terminei os exercícios da Oficina Literária. O professor vai ficar pê da vida se eu não concluí-los. Ele gosta quando apresentam trabalho. Desmonta, desmancha, remonta por várias vezes até que considera o texto aceitável. E quais os exercícios que apresentarei? Tenho duas opções: Termino os sobre monólogo interior ou faço um conto de Natal. Sem tempo para fazer tudo, prefiro escrever o conto.
Feliz, ele brincava com outras crianças. - Parei de escrever por meu filho entrar no quarto:
- Pai, o senhor imprime meu currículo? Amanhã, precisarei para uma entrevista. - como negar um pedido deste? E ainda mais se tratando de uma promessa de emprego. Nos dias de hoje, as chances são raras, não vale desperdiçá-las. Ao terminar de imprimi-lo eram vinte e duas horas:
Todas as vezes que passava por mim, ria. Com oito anos nunca participou de um Natal em família. A mãe na condição de pedinte,  comia do que lhe davam, dormia sob as marquises no comércio da Encruzilhada.... - Bateram na porta do quarto. Desta vez, era a filha:
- Papai, não consigo dormir. O senhor tem algum remédio?
-Faça um chá de camomila. - e continuei:
Quando a mãe morreu ele tinha dois anos. Amparado pela  Casa da Amizade, logo o encaminharam para um orfanato onde permaneceu por seis anos. O dirigente que era canadense recebia ajuda financeira de alguns conterrâneos o que possibilitou a sobrevivência da instituição por um bom período. O número de crianças aumentava a cada ano, chegando a casa dos cem, entre meninos e meninas. Certo dia o diretor sentiu dores no pulmão. Estava com um CA. Teria de retornar ao seu país. Os problemas logo surgiram.
Um domingo antes do Natal,...- parei a digitação. A esposa entrava no quarto:
- Querido, está passando um filme ótimo. Não quer assistir?
- Infelizmente não posso. Preciso concluir este conto para entregá-lo amanhã. - voltei a escrever:
Um domingo antes do Natal fui com a esposa e outro casal fazer uma visita ao orfanato. Recebi informações de que as condições das crianças eram as mais precárias possíveis. Sem dirigente aquela instituição estava à deriva. Alguém teria de ajudar. Reuni-me com a esposa, alguns casais amigos e decidimos fazer, em primeiro lugar, a festa do Natal. As instalações eram boas: campo de futebol, teatro, pátio para brincadeiras de salão e um amplo restaurante. Junto com outros casais e filhos, improvisamos jogos, peça teatral, doces e salgados e, como não poderia faltar, presentes. Arrecadamos donativos. Deixamos o orfanato abastecido por um mês. No meio das brincadeiras vimos uma criança: desengonçada, raquítica, estrábica. No entanto, o carisma fazia inveja a qualquer outra bem afeiçoada. Chamava-se Luis Carlos. Logo me veio a mente apelidá-lo de “Toninho Cerezo”, cuja carreira estava no auge. Um apelido como aquele era um elogio dos bons. Precisava ver a satisfação quando eu disse:
- Ele se parece com “Toninho Cerezo”. Não acham?- e um dos amigos respondeu:
- É mesmo. Quando crescer será o próprio jogador. - no resto da tarde, não mais nos largou. Eu e a esposa sentimos ter de deixá-lo.- mais uma vez abriram a porta. Era a esposa que entrava no quarto com os olhos entreabertos. Tombava aqui, tombava acolá. Ao tocar na cama, desabou como uma pedra. Sem querer perturbá-la, acendi o quebra-luz e continuei a escrever:
A semana passou rápida e, como era costume, convidamos parentes e amigos para a nossa ceia de Natal. O casal Claudia e Fonseca trazia entre os filhos Luis Carlos que ao me ver, disse:
- Tio, feliz Natal. - Fiquei calado. Não sabia o que responder. Abaixei-me. Dei-lhe um abraço. Ele estava bem vestido, cabelo cortado, sapato novo. Nem parecia um menino de orfanato. A noite foi só alegria. Os amigos e parentes mais afins aproveitaram a ocasião e comentaram sobre o significado do Natal: Renovação de fé, confraternização em família, puro comércio, troca de presentes.
A servida a ceia, alguns convidados foram aos digestivos enquanto outros se despediram. Chegada a vez de Fonseca, Luis Carlos disse:
- Tio posso ficar e dormir aqui?
- Meu filho, por que você não quer voltar com a gente?- disse Fonseca.
- É porque nesta casa tem muitos meninos para brincar.- e minha mulher respondeu
- Fonseca, deixe ele dormir aqui. Assim vocês aproveitam e amanhã almoçam com a gente.
- Obrigado tia Cristiane. E se estirou para beijá-la.
A noite era curta para tantas brincadeiras. Só dormiu quando meus filhos e sobrinhos também foram para a cama. - o cachorro começou a latir e a acordou. Ainda com a voz sonolenta, disse: Vai olhar porque neném está latindo. - nosso fila tinha em torno de cinqüenta quilos e sessenta centímetros de altura. Achar que era neném foi demais.  Imagine ao se tornar adulto! - Desci do primeiro andar com as luzes apagadas. Quando me aproximei da porta da área de serviço, antes de abri-la, tive um pressentimento de que havia alguém do outro lado. Os cabelos ficaram em pé. Contudo, tinha de prosseguir, afinal para que serve o dono da casa. A porta estava apenas no trinco. A adrenalina subiu a mil. Num rápido movimento a abri. Um grito dobrado se ouviu. Dobrado sim. Meu e de meu filho, que voltava do quarto de serviço onde fora buscar o pijama. Retornamos rindo e na algazarra acordei a esposa que, depois do ocorrido, ficou brava. Passado o susto voltei ao computador:
No dia seguinte, Luis Carlos acordou cedo e logo foi a procura dos presentes. Quando chegou a hora de ir para o orfanato, os olhos se encheram de lágrimas. Senti-me vazio. Cristiane ao vê-lo sair, comentou:
- Estou deprimida. Esta criança me abalou. Ainda é tão indefeso para morar num orfanato. Você não acha José?
- Sim. É muito indefeso para ser criado sem uma família. Enquanto não vemos ou participamos destes problemas, nada sentimos. Mas, quando presenciamos e nada fazemos, nos julgamos falsos, desumanos, culpados.
- Eram vinte e três horas quando os meus olhos começaram a arder de sono, mas meus pensamentos estavam ainda latentesr, queriam mais:
“Ainda bem que hoje é sexta feira. Epa! Esta frase lembra a propaganda da cerveja: “Bavária... Bavária...Ba va riá.” Vou parar por aqui. Amanhã levarei o texto para Gravatá. La estarei só com a esposa. Não terá ninguém para atrapalhar.” Não consegui conciliar o sono. Durante o resto da noite a famigerada música da Bavária não me deixou em paz. Apesar de tudo, acordei disposto, na mesa da sala, me concentrei no conto. Sentia diferença por não estar no computador. Os pensamentos não chegavam. Levantei-me, fui ao bar, botei uma branquinha, descasquei uma laranja cravo e a tomei de um só gole. A inspiração chegou rápida.
Faltava um mês para o início do período escolar quando fui com minha mulher  falar com o diretor do orfanato:
- Sr. Domingos gostaríamos de falar sobre a alfabetização de Luis Carlos.
- Pois não.
- Iremos matriculá-lo na Escola São judas onde meus filhos estudaram. As professoras são pessoas amigas e farão tudo para alfabetizá-lo. Ele almoçará na escola e no fim do dia o traremos de volta para dormir no orfanato. O senhor concorda?
- Desde que seja para o benefício dele, nada tenho a me opor. Peço apenas que assinem este papel. Assim ficarão livres de qualquer eventualidade.
Quatro meses depois Domingos me procurou:
- Sr. José, eu preciso lhe comunicar o que se passa.
- O que houve?
- O orfanato vai fechar. Como o senhor bem sabe, estamos sem o apoio dos canadenses, da sociedade e do governo. Desta forma não temos condições de mantê-lo. Resolvemos entregar as crianças. Elas serão distribuídas entre a FEBEM, outras instituições e algumas famílias que se interessarem. Vim aqui porque o senhor e sua esposa ajudam Luis Carlos. Talvez possam encontrar uma solução. Entre as cem crianças apenas Luis e Tobias estão sem destino. O senhor pense. Se possível, me dê uma resposta dentro de duas semanas.
- Sim. Conversarei com Cristiane e assim que tiver uma resposta entrarei em contato. - Rápido, contei à esposa:
- José, poderíamos pedir um termo de guarda. Ele ficaria em nossa casa. Assim continuaria os estudos. - naquele momento, ouvi a risadagem dos filhos que acabavam de chegar. Com eles outros casais amigos. A casa lotou. A tranqüilidade acabara. Guardei os papéis e entrei na farra.
Na Segunda feira, recomecei durante a noite.
Luis Carlos morou por quatro anos em minha casa. Como toda a criança dá trabalho, eu precisava as vezes de muita paciência, noutras, perdia mesmo e o igualava aos filhos. Alguns castigos sem palmadas eram necessários. Desta forma, tentei com a esposa dar-lhe conforto, instrução, carinho e, sobretudo, percepção de como era viver em família. Empregando a mesma tática utilizada com os meus filhos vimos que não tínhamos sucesso. Cada dia ficava mais desobediente. Sem querer estudar, na minha ausência e da minha esposa passava o dia na rua. - uma forte chuva desabou sobre a cidade. A temperatura logo baixou. A noite está própria para escrever e tomar conhaque. Levantei-me, botei uma dose, voltei para o computador. De repente faltou luz. Não estou com sorte mesmo. Quando a energia foi restabelecida, já não suportava o sono. Fui para a cama. No dia seguinte notei que perdera parte do texto. E o refiz:
No sentido de encontrar um caminho certo para educá-lo, procuramos as psicólogas do Estado. Foi aí que veio a decepção. Soubemos que ele não queria mais morar na nossa casa. Orientado ainda pela juíza o internamos numa escola de artes e ofícios. Ele não se adaptou. Todos os dias fugia com outros colegas para tomar banho de rio. Fomos buscá-lo mas, as relações – pai e filho, não mais existiam. Quebraram-se. O devolvemos à FEBEM.
Daí em diante nas celebrações do Natal me vem a mente o seu sorriso e o questionamento:
“Onde falhei? Sem procurar saber, nunca aprenderei a lição.”

* * *