segunda-feira, 24 de março de 2014


AMARGO DA VIDA


                                       “ A violência é criada pela desigualdade;
                                          a não-violência, pela igualdade.”

Mahatma Gandhi

 Os trovões anunciavam a esperança de vida, a fartura para o povo sofrido. O temporal desabou.
As crianças corriam, pulavam e gritavam sob a chuva. Para todos, motivo de alegria. O tão esperado dezenove de março, dia de São José, trouxera o inverno em toda a região do agreste nordestino.
Pela janela José Severino observava o vai-e-vem das crianças: Ah! Que falta tenho daqueles bons tempos, quantos amigos, quantas brincadeiras. As estórias assustadoras e de aventuras de caçador. Onde estará seu Bené? Será que ainda vive? Nunca mais me trouxeram notícias dele. Vou perguntar a Tonho quando passar por aqui.

José vivia limitado a quatro paredes, companheiras da solidão, e as lembranças da juventude. Se distraia com o próprio pensamento. Ficava horas a fio lembrando-se do tempo em que podia viver com vigor e energia:

“Daqui a um mês os umbuzeiros devem ter frutos maduros. Como era bom sentar à sua sombra e comer umbu, esperar a revoada dos marrecos na boca da noite, atirar de badoque, andar descalço pela terra molhada, sentir o cheiro do mato, tomar banho no riacho, beber daquela água cristalina e voltar pra casa sem se importar com a hora. Estas lembranças alimentam minha alma, trás esperanças, fortalece a resignação para não me tornar louco. Se algum dia elas me faltarem acho que enlouquecerei.”

De costas para a janela recostou-se na cama e continuou a pensar. As recordações, aos poucos, tornavam-se mais recentes:
“Será que Adelaide já casou? Ah! A vida foi malvada comigo. Podia ter sido tão feliz.”

A angustia logo se instalou e veio pesada. Para não se deixar levar ao desespero, levantou-se da cama. Caminhava de um lado para o outro no pequeno compartimento, até que o cansaço o dominou. Deitou-se, dormiu.
Filho de agricultores, muito cedo aprendeu a lidar com a terra. Os pais sobreviviam do fabrico de farinha de mandioca. No dia da torragem era o costume da região  realizar uma festa. Numa dessas, conheceu Adelaide, moça morena e formosa, de andar faceiro e riso aberto. Os freqüentes passeios atearam fogo e logo José se apaixonou. O namoro durou pouco. Constantes dores de cabeça o impediam de acompanhar Adelaide. O médico local sem ter um diagnóstico formado, o mandou ir a um centro mais adiantado. 
 Sem saber se movimentar na capital, o pai o acompanhou na viagem que fizera de trem. Na volta, ele pensou:

 “Esta tal de Recife que muitos falam, não tem graça. É só agitação. Gente para lá e para cá, parece que não têm o que fazer! Queria ver esse pessoal lá na roça, com uma enxada na mão cavando o chão, arrancando mandioca. Se a metade dos que vi por aqui fosse para a lavoura, nossa terra seria outra.”

Os exames indicaram ser problema de vista. Precisava usar óculos. O grau da miopia era forte. Exigia grossas lentes. Após usar por uma semana, as dores de cabeça sumiram. Mas, um outro problema surgiu. O rosto se transformara. Os olhos vistos através das lentes deixavam-no envelhecido. Parecia um abobalhado. As conquistas tão freqüentes, estavam dificultadas. Adelaide, mulher dos seus sonhos e de tantos forrós, se esquivou de acompanhá-lo.
No dia de São José fazia aniversário. Na tentativa de superar os problemas, aproveitou a festa do santo dia para convidar os amigos para irem a um forró onde comemorariam o aniversário. Adelaide, num vestido estampado, acima do joelho, ombros nus, estava mais formosa do que nunca. Enciumado por vê-la dançando, deixou o bar e entrou no salão:

- Coma vai Adelaide? Faz tempo que chegou?
- Sim. O forró está é bom. E continuou a dançar sem lhe dar importância. Acabrunhado, deu meia volta. Dirigia-se ao bar improvisado com tábuas rústicas e palha de coqueiro que ficava ao fundo da palhoça, quando encontrou um amigo:
 - Pedro, como vai rapaz? Sabe que hoje é meu aniversário?
- É mesmo? Então vamos beber.
- Tonho, bota aí uma da garrafada de jurubeba para mim.   Hoje a bebida é por minha conta.

Mal foi servida uma rodada, pedia outra. Após tomar umas quatro, viu algumas moças encostadas na mureta de palha que delimitava o terreiro de chão batido. Com a bebida fazendo efeito, saiu ao encontro delas e tirou uma para dançar. Calçado com botas de vaqueiro saiu pisando e atropelando tudo o que lhe aparecia no caminho. No meio do salão, deparou-se, a menos de dois palmos, com Adelaide que colada dos pés a cabeça, dançava de olhos fechados sem se importar com o mundo. Aquilo para ele foi mesmo que uma punhalada. Num movimento brusco, largou a moça e saiu do salão:
- Tonho me dá mais uma.
- Vai devagar José. A noite ainda nem começou.
- Que nada. Hoje estou pra tudo.
Pedro que assistiu a cena, preocupado com o que poderia ocorrer disse:

- Irmão, o que está acontecendo? Estou admirado. Nunca o vi beber assim tão depressa!

- Você esqueceu que é o meu aniversário. Com as chuvas da tarde nossa lavoura está garantida. Por isto estou alegre.
- Será mesmo isso, José? Ou será por causa de mulher?
- Está besta homem. Beber por causa de mulher. Nem quero pensar. Aquilo é uma mulher desavergonhada.
- Deixe ela para lá. Veja quantas moças tem sobrando. Vou tirar uma para dançar. Você não vem?
- Daqui a pouco. Tonho, bota mais uma
.
A língua embolada dificultava a fala. Tonho notando o estado de embriaguez em que ele estava, nada mais comentou. Fez-lhe um gesto de desaprovação com a cabeça, serviu o pedido. De um único gole José virou o copo, deu um passo, cambaleou, aprumou-se, subiu as calças e entrou no salão:

- Adelaide. Esta dança é comigo.

Sem esperar resposta, tomou-a do parceiro. Aquela ação provocou uma reação imediata do outro que lhe deu um empurrão. José se livrou dos braços de Adelaide que o agarrava pela cintura e sacou da cintura uma faca. Deu cinco peixeiradas no rapaz:
- Isto é para aprender a não tomar a mulher de um homem, cabra da peste.

E saiu pelo salão ainda com a faca em punho, como se nada tivesse acontecido. Todos os olhavam admirados sem acreditar que uma pessoa tão calma era capaz de uma atitude daquela. Ao tentar subir no cavalo, os policiais o prenderam.
Três anos se passaram sem que fosse julgado do crime. A janela da cela era a única visão que o fazia lembrar-se do amargo da vida.


* * *


sexta-feira, 14 de março de 2014

Ilusão?


Hora de renovar a crença.


- Você vai conseguir sair desta tempestade?
- Enquanto perdurar esta ganância, sei não, Carlos. Eles vão se rebentar mais à frente. Tenho pena dos milhares de trabalhadores espalhados por todo o país. Um dia irão perder a esperança.

O presidente da Cooperativa Terra e Mar lia o jornal enquanto um amigo, jornalista, o questionava:

- Preparam a armação para os covos, incentivam a pescaria, mas, na hora de dividir o peixe dá tudo errado. A partição não é justa. Administrar uma cooperativa, deste porte envolve um mundo de gente a querer concessão. Com isso gera-se a instabilidade e dificulta a implantação do projeto. 
- E você, por quanto tempo ainda suportará esta pressão? Continua acreditando que irá implantá-lo.
- Sou nordestino, nasci pobre, estudei em escolas públicas, mas tenho orgulho do que aprendi até hoje.  Quando resolvi ser presidente desta cooperativa, sabia que teria dificuldades. Agradar a todos não é fácil. Preciso confiar nos meus assessores, até que me provem o contrário. Vou insistir.
- Mas, o que eles lhe deram em troca?
- Fora as tempestades, calmarias. Avanços significativos. A cooperativa cresceu até mais do que eu esperava. Em alguns setores diria que foi até bom, melhor do que nas gestões anteriores. Mas a ganância de muitos vem estragando o que se construiu. Reconheço que uma boa limpeza será necessária para descobrir onde estão as eras daninhas que contribuem para o apodrecimento dos produtos da cooperativa. Do contrário a produção será um fracasso total.
- Vai ser uma batalha difícil.
- Mas não impossível se conseguir pegar o fio da meada. Você é testemunha que fizemos algumas melhorias. As respostas vieram rápidas: a produção cresceu, a Cooperativa sobressaiu-se. Quem não a conhecia por dentro a imaginou sólida. As filiais por todo o Brasil davam sinais de prosperidade. O mercado com o exterior foi acelerado e podemos vender a preços competitivos. Firmas internacionais acreditaram nos resultados de curto prazo. Atribuíam o crescimento aos planos da nova administração e o entusiasmo dos empregados. Com isto trouxemos o capital estrangeiro. A nova fase deu esperança a todos.
- Por que então não conseguiu manter o ritmo?
- Ah! Meu amigo. A ganância.
- Não acredita que a omissão de alguns foi um fator que mais pesou para esconder a flora de eras daninhas?
- Não propriamente a omissão. Diria que faltou uma ação conjunta de todos. A cooperativa precisa ser administrada com um único objetivo; o crescimento de todos.
- Mas isto é impossível. Os interesses estão acima de tudo. Não vejo saída Você está numa enrascada. Todo dia surgem novidades. Lembre-se que a cooperativa tem muitos sócios. Administrar sozinho é impossível. Novos sócios irão surgir com soluções as mais miraculosas possíveis. Para os projetos saírem do papel você irá precisar da aprovação e consenso deles. Diga-me a verdade, você tem saída?
- Tenho. Vou investir com todas as forças. Se perder a esperança a administração será um fracasso.
- Não seria melhor entregar o cargo?
- De jeito nenhum. O compromisso assumido me impede. Tenho de renovar a crença. Eles precisam ver a cooperativa em pleno progresso.
- Carlos, já está na hora de mudar. Seja contundente, mais ousado. Desagrade a alguns, mas cumpra o prometido. Arme-se de coerência. Um pulso forte nestas horas é preciso. Lembre-se que muitos estão esperançosos. Não os desiluda.
- Isto é tudo o que não desejo. Deus irá me ajudar na escolha dos novos sócios. Se errar desta vez, será o caos.
- Serei sincero com você. Se desta vez cometer qualquer falha pode abandonar a cooperativa ou eles lhe crucificarão vivo.


* * *
                                               
                                                  Perpétua

                   Tudo tem um motivo de ser. Nada acontece por acaso.


O céu em poucos minutos escurecera. As estrelas brilharam na falsa noite quando o sol na autoridade de rei permitiu a lua lhe fazer sombra; sinal de agouro entre muitos, inclusive Lúcio Lucas Leão que naquele momento, recebia notícias de Perpétua:
- Pai, eu não entendo Deus. Onde Ele está numa hora desta? Se Perpétua morrer eu nunca O perdoarei.
- Lucas, entender os nossos semelhantes já é difícil, imagine as coisas Divinas. Meu filho, você é jovem, tem muito o que aprender, não As questione. Tudo tem um motivo de ser. Nada acontece por acaso.
- Isto não é justo.
Enfurecido saiu da sala resmungando, respirava ódio. Nunca aceitava um assunto sem antes discuti-lo até entender as razões expostas. Depois as defendia quaisquer que fossem as conseqüências.

No dia seguinte, foi até a casa de Perpétua. Na porta do quarto parou e ficou a observá-la sentada na cama. Distraia-se com os pardais que pulavam de galho em galho na alegria da liberdade. A doença interferia nas horas, nos minutos, nos segundos tornando-os mais velozes; o tempo espremido. As forças do vigor da vida pareciam minguar. Rosto pálido, olhos envoltos por anéis escuros, lábios secos. Ainda assim continuava bela:
- Perpétua, posso entrar.
- Lucas! Mais claro que pode, entre, sente aqui perto de mim.
- Trouxe umas coisas pra você, não sei se acertei seu gosto, mas me esforcei.
- E acertou mesmo. Adoro biscoitos, flores. Onde conseguiu estas rosas amarelas, são tão difíceis por aqui! Elas  são lindas.
- Com um japonês que agora apareceu no mercado novo.
- Lucas, você pode chamar a enfermeira pra mim. Eu quero colocá-las num jarro. Espero que durem bastante. Depois você me coloca na cadeira para irmos até o jardim.

Entre um e outro canteiro ela comentava:

- Antes de adoecer todos os dias aguava as plantas.
Gosto de sentir o cheiro das flores, da terra úmida. São cheiros que nos faz lembrar o passado, cheiros da infância. Lucas, você também gosta de observar a natureza?
- Gosto, e ao seu lado mais ainda.
- Tem sido tão bom comigo. A única coisa boa que esta doença me trouxe foi você. Gosto de estar ao seu lado. Quando melhorar, iremos passear.
- Sim, iremos à praia.
- É mesmo. Estou muito branca. Preciso tomar sol. Depois que adoeci poucos minutos fico aqui no jardim. 
- Os colegas vieram vê-la?
- Não, só você. Acho que eles têm medo de mim.
- Que besteira, Perpétua. Não vieram porque, quase todos, ficaram em recuperação. Eu e mais uns quatro ou cinco tivemos sorte, passamos direto. Por isso estou aqui.
- Deixe pra lá. Hoje nada estragará meu dia. Quer namorar comigo?
- É tudo o que desejo. Aguardava uma oportunidade para lhe dizer o quanto gosto de você.

Curvado sobre a cadeira de rodas a beijou. Os olhos de Perpétua se encheram de lágrimas:
- Você costuma rezar?
- Para que falar nisso?
- Eu quero me curar. Eu quero viver.

Embora o céu estivesse sem nuvens e o Sol forte, as mãos de Perpétua estavam frias. Precisava sair dali o mais rápido possível. Ela continuava falando. A voz se distanciava cada vez mais, porém ele nada entendia. E, levantando a voz ela disse:

- Lucas, você está me ouvindo?
- Desculpe. Estava distante, pensava no trabalho que ainda hoje tenho que fazer para ajudar um colega. Ele também vai fazer Medicina. Perpétua, eu preciso ir. Amanhã voltarei nesta mesma hora. Agora, deixe-me beijá-la.

Com muito esforço consegui levantar o corpo e o beijou:

- Obrigada por tudo, Lucas.
-Não há motivo para me agradecer. Amanhã estarei aqui.  

O trabalho de química para o colega foi concluído naquele mesmo dia. Agora quanto mais estudava mais vontade tinha. Ser médico tornara-se uma obsessão. Problema difícil, sinônimo: desafio. Desligar-se de uma questão só com a resposta certa. Um campo aberto para a intromissão do cansaço, do stress. Precisava parar. O relógio bateu meia-noite. Um arrepio seguido por um aperto no coração trouxe a lembrança de Perpétua.
“Será que dormiu ou está acordada, cheia de dores? Paciência, minha querida, em breve ficará boa. Aparecerá um modo de curá-la. Se não for Deus, será um mortal que tornará seus dias mais confortáveis, mais cheios de vida. Para isto, resista. Não se entregue, não se deixe levar pelo desespero. Encontre na doença força. Lute em defesa da vida. Pense em quanto ainda tem para desfrutar e perpetuar sua existência.”

A noite foi angustiante. Na hora do café,  o pai aproximou-se devagar:

- Lucas, não tenho boas notícias.
- Perpétua?
- Sim. Ontem à noite.

De cabeça baixa escutava o que ainda seria dito para machucar, ferir o corpo e a alma.

- Pelo menos deixou de sofrer. Soubemos há pouco.

O desabafo veio forte:

- Por que meu Deus? Por que tirar uma vida tão jovem. Nem quinze anos completos tinha! Que pecados poderia ter?

Saiu da sala sem levantar a vista. Estava desiludido, ofendido, abatido. Queria vê-la, segurar-lhe a mão. Com isso, quem sabe ela não ganharia um pouco de segurança na viagem sem volta. O sangue fervia, formigava o corpo e permitia o ódio incendiar a alma. Sem se conter deixou vir a explosão: “Se é tão poderoso como dizem por que não sai em defesa dos necessitados? Onde está SEU coração? Deixar pessoas inocentes morrerem? Trazer infelicidade aos que ficam? Isto não é comportamento Divino. Porque é DEUS acredita que pode fazer isto? Desta forma também serei UM. Eu me preocupo com os outros. Dedicar-me-ei ainda mais à medicina para LHE provar que sou mais humano. A minha vida pertencerá aos meus semelhantes. Quero proporcionar-lhes mais conforto, mais felicidade, mais paz de espírito.

O caminho para casa foi pela Avenida Beira Mar. Precisava de ar puro. A maré baixa convidava a caminhar sem sapatos. A umidade e frieza da areia massageando os pés, diminuindo as tensões. O Sol logo nasceria. Pouco a pouco o negro da escuridão cedia à cinza, à prata, à luz. Luz que vinha com força, com brilho, de meio dia, de um verão sem nuvem. Estava difícil desviar os olhos daquele esplendor. Atordoado, ouvindo uma voz, caiu de joelhos com a mão nos olhos:
 “Lucas, Lucas, o que queres provar? Por que me desafias? A dúvida é tua inimiga. Fazes a tua parte. Não te preocupes em fazer mais do que podes. Eu cuidarei a partir de onde ficares.”

Outras vozes castigaram o silêncio do culpado:

- Mateus, aquele não é Lucas, que está ali deitado na areia.
- Parece. Vamos lá.
- Lucas, o que faz aqui? Precisa de ajuda?
- Não. Estou bem. Foi só um cochilo. Coisas do cansaço.
- Amigo é perigoso dormir aqui sem ninguém por perto.
- Eu sei, obrigado.
- Até outra hora, Lucas.
- Até, mais uma vez obrigado.
- De nada. Se cuida rapaz.

A manhã se instalou. Trazia o sol limpo a iluminar tudo em que seus raios tocavam. No caminho de casa as palavras continuaram a soar vivas num tom forte e melodioso.
Naquele dia a concentração no trabalho estava difícil. Pela primeira vez estava desanimado, sentia uma sensação de vazio na alma. Seria melhor voltar para casa.

Na manhã seguinte veio o arrependimento:

“A Sua luz, a Sua voz, Sua palavra, trás segurança, nos dá ânimo; Reforça o compromisso com a responsabilidade. Queria agradecer-LHE pelo que nos permite fazer pelo próximo. Suplicar-LHE-ia ainda, sempre nos acompanhar na incansável busca para dar felicidade ao próximo.”

Ainda hoje vejo Perpétua sorrindo como no primeiro e único dia de namoro.

                                                             * * * 

quinta-feira, 13 de março de 2014




         Sermão da Verdade

                        “Quando a gente se liberta dos nossos medos, 
                          nossa presença liberta os outros.”

       Nelson Mandela - 1994


- ... esta é a verdade, Tobias
- Você quer dizer, sua verdade, não é?
- Não, o que eu disse está na Bíblia.
- Você falou do jeito que está escrito. Será que decorou porque não entendeu ou tem medo de dar sua opinião.
- Nem um nem outro. O que está na Bíblia é o certo.
- Ah! Deixe pra lá, esta conversa não tem futuro.
- Espere, desarme-se. Não entendo você, Tobias, se não acredita em Deus, por que estuda Teologia?
- O que tem a ver? Isto tem importância?
- Tem sim.
- Posso ser ateu, mas o que me disse pode ser ou não verdade. Nem tudo que está na bíblia é o que você entende. Os textos foram escritos em forma de metáforas. Eles dão asas a imaginação.
- Vamos mudar de assunto que é melhor.
Enquanto isso, um homem de paletó e gravata borboleta que estava sentado no mesmo banco da praça que eles lia um grosso livro de capa preta. Ao pressentir que a conversa chegara ao fim, dirigiu-lhes a palavra:
- Perdão rapazes. Posso fazer algumas considerações sobre o que discutiam?
- Por mim tudo bem. - Respondeu Tobias. Adauto baixou a cabeça e nada comentou.
- Para que melhor entendam o que vou dizer, farei um breve comentário sobre a história do homem que há muito busca a verdade. A princípio imaginava que se um dia a conhecesse seria poderoso. E, utilizando-se da força física, tentou impor o que considerava verdadeiro. Tornou-se respeitado, feliz. No entanto, algo continuava a inquietá-lo. Na tentativa de sanar a angústia, descobriu que o poder financeiro em algumas pessoas proporcionava uma vida alegre, sem traumas aparentes. Partiu, então, para uma nova experiência; ter dinheiro, ter poder, ser respeitado. Não demorou muito para a insatisfação voltar. O domínio pelo seu semelhante não preenchia o vazio como imaginara. Observou que a felicidade não dependia apenas de poder e sim de valores agregados à formação da personalidade de cada um.
- Conforme as conveniências? É a isto que você quer chegar?
- Sim Tobias, até certo ponto sim. No início, por depender da educação recebida. Depois, cada um assimilava ao seu modo. O pensar e o agir são pessoais. A felicidade se aproxima ou se afasta de acordo com os valores que cada um agrega. Para se adquirir momentos de felicidade é necessário conhecer-se a si mesmo a fim de identificar as alegrias e tristezas que foram responsáveis pela formação da personalidade. Com isto, rapazes, a verdade de cada um se tornará explicita. Às vezes até única. Vocês têm razão no que defendiam. Continuem discutindo o assunto e irão notar que as verdades se aproximam. Nunca pensem que ela será única ou igual. Os caminhos, embora distintos, conduzirão a um entendimento porque a base da discussão é a mesma. Desculpem-me por ter falado tanto. Sempre me entusiasmo e esqueço que esta é a minha verdade e não a de vocês. Até outra hora. Foi um prazer conhecê-los. Em breve nos veremos na faculdade.
- Graças a Deus ele se mandou. Tobias, ele ensina mesmo o que?
- Sei lá. Se for professor pelo menos seja do último período. Já pensou quando ele falar sobre a ressurreição?
No corredor da faculdade encontraram-se com alguns conhecidos e se informaram da sala em que teriam a primeira aula de Teologia. Os colegas responderam que já estava na hora. Fossem rápidos, pois o professor não tolerava alunos que chegassem atrasados. Logo aceleraram os passos e viram apenas duas cadeiras vazias no final da sala. Naquele momento o professor, de livro da capa preta na mão, paletó e gravata borboleta acabava de entrar cumprimentando os alunos. Tobias e Adauto se entreolharam:
- Bom dia a todos. Meu nome é Elias. Não o profeta, mas um seguidor de suas leis. Vocês já devem ter ouvido falar do meu método. Muitos aqui nesta sala são veteranos. Acredito que devem gostar muito da matéria que ensino. Um fato é certo: prestou atenção tem condições de entender o assunto. Mais uma vez Tobias e Adauto se entreolharam:
- Vocês dois aí no meio da última fila, por exemplo, já tiveram a oportunidade de conhecer um pouco do que acredito ser “o conceito da verdade”, não é mesmo?
Os dois balançaram a cabeça em sinal de aprovação.
- Você, Tobias... É este mesmo o seu nome?
- Sim, senhor.
- Pois bem, ouvi um pouco do que conversavam na praça sobre a verdade da Bíblia. Entendi que você explicava para o seu amigo que uma verdade pode não ser única. Tudo depende da forma de entendimento de cada um, foi isso mesmo o que queria dizer?
- Sim, senhor.
- Pois bem eu continuarei o assunto a partir daí. Depois da aula os demais alunos irão lhes procurar. Passem para eles o entendimento de vocês. Nesta aula inaugural vou falar das necessidades do homem que desde os tempos primórdios procura entender os mistérios da vida. Com o domínio da escrita, tornou-se mais fácil registrar as diversas teorias do nascer e morrer, do ato de amar e de dominar o próximo. Entretanto, continua até hoje sendo o seu maior obstáculo, o entendimento da felicidade e do amor...

- Adauto não vou agüentar este assunto até o final da aula!
- Cala a boca, Tobias, ele não tira os olhos da gente.

...o homem utilizando-se da liderança, como primeira alternativa, conseguiu obter satisfação pessoal. Por determinados momentos sentiu-se em paz consigo mesmo e respeitado pelos demais. Com o passar do tempo foi descobrindo que não era a liderança, o domínio de seu semelhante o que lhe dava satisfação. E partiu para uma nova busca. Observou que os afortunados, os que detinham bens materiais, viviam alegres. Até certo ponto o poder financeiro lhes assegurava melhores condições de vida. Depois vieram as discórdias, as brigas, as batalhas para adquirirem mais terras, ampliar o seu reino, dominar o povo.
Passado uns tempos novamente sentiu-se vazio. Percebeu que a tentativa em busca da felicidade estava frustrada. Não era o domínio dos seus semelhantes nem de suas terras que alimentaria o ego. A satisfação pessoal não dependia dessas ações. Pensou, então: “Será que depende do conhecimento e domínio dos valores que cada ser possui?” Viu-se então impulsionado a saber o que motivava a alegria e a tristeza. “Será que existe alguém totalmente feliz? Alguém totalmente triste? Quais os valores que trazem felicidade ou tristeza? Como conhecê-los se divergem em cada ser humano? Será que no mundo existem duas pessoas que pensam igual?” E novamente veio a idéia de procurar entender o seu interior, e a formação de sua personalidade.
Com o conhecimento de si mesmo, o homem continuou a ter momentos de alegria e de tristeza. Nesta luta para desvendar este mistério notou algo mais que um simples conhecimento de si mesmo.  Seria necessário se aprofundar nos livros os mais diversos na tentativa do descobrir a verdadeira razão da sua existência...

- Eu não acredito que ainda estou aqui.
- Cala a boca, Tobias. Vamos esperar e ver onde ele quer chegar.
- É muita besteira numa só aula.
- Ele está olhando pra gente.
- Tobias, você tem mais momentos de alegria ou tristeza?
- Professor, eu nunca me preocupei com isso. Tem dias que não estou tão satisfeito, mas logo passa.
- Este é um dos males dos jovens. Não se preocupam em conhecer-se enquanto é tempo. Mas, continuando, o homem encontrou nas leituras um denominador comum. Profetas, escritores, filósofos escreveram sobre o amor. Esse sentimento está registrado nas mais primitivas formas de expressão. Entretanto não foi suficiente para explicar a inquietação humana. Era preciso entender quais as conseqüências advindas do amor e como proceder para adotá-lo como princípio único e fundamental de vida.
Diante deste desafio, recorrendo mais uma vez ao estudo, concluiu que o melhor caminho para o amor estava contido na frase: “Amai ao próximo como a ti mesmo”. E procurou o sentido de cada palavra nesta frase para as mais variadas formas de concepção de Deus. Observou que ora admitia uma entidade extrínseca, ora intrínseca, ao ser humano. Daí em diante começou a divergir de seus semelhantes. Os caminhos escolhidos tinham de ser únicos. Só existia um caminho porque a verdade era única. Com isso surgiram os Iluminados, aqueles de grande sabedoria, fé e domínio dos ditos poderes espirituais e paranormais, que os destacavam, os tornavam líderes. Não demorou muito para centenas, milhares, milhões de seguidores defenderem as verdades apresentadas como únicas. Estava criada a diversificação da verdade, estava criada a religião. E em nome de Deus os homens começaram a se desentender...
- Mas que aula chata, Adauto. Acho que ao sair daqui vou trancar meu curso.
- Cala esta boca. Está chamando a atenção dele, prepare-se que ele vai fazer mais perguntas.

...cada facção defendia a sua história, os seus dogmas, sem admitir, por hipótese alguma, argumentos contrários, por mais lógicos que fossem. Desencadeou-se em nome de Deus, verdadeiras batalhas e perseguições àqueles que desobedeciam as crenças e dogmas adotados em aldeias, tribos. Até mesmo em países ditos, na época, como os mais adiantados.
Com grande temor do que poderia acontecer sobre as discórdias ele pensou: “O que preciso para falar com Deus.” Lembrou-se, então, que a concepção do seu Deus é influenciada pela cultura e os valores pessoais da formação do seu caráter. E, começou a questionar: “Meu Deus é algo distante de mim ou está dentro de mim porque faço parte do Universo como uma partícula do todo?” De uma ou outra forma, acreditava na existência de um Criador. E, a principal meta era amar a Deus acima de qualquer coisa. Para isto seria preciso conhecer algumas outras diretrizes para alcançar o que pensara. “Poderei amar a Deus se não consigo amar a mim mesmo?” O homem dominado por esta dúvida tentou visualizar que motivos o conduzia a esta atitude. Fez, então, uma análise dos fatos marcantes de sua vida. Anotou as datas prováveis das ocorrências, ponderou os fatos significativos e, deparou-se surpreso; tinha muito a fazer para modificar o seu modo de pensar e agir até consigo mesmo. Só assim melhor se conheceria e quem sabe talvez pudesse fazer parte do Criador. Desta forma, jamais poderia deixar de amar a si mesmo. Com esta compreensão estava criada a segunda pergunta: “Como posso amar ao próximo como a mim mesmo se não o conheço?” Diante desta questão tão complexa para um mundo que gira em função de conceitos e normas variáveis para cada país, o homem se viu numa encruzilhada. “Ou me aproximo do meu semelhante, para melhor compreendê-lo ou não farei parte do Criador.” Foram várias as tentativas. De certa forma alguns conseguiram. Mas a maioria foi movida pela inveja. Inveja que gerou rivalidades. Cada um agia individualmente, embora estivesse numa sociedade com regras e normas iguais para todos. A concordância virou hipocrisia.  Foi utilizada apenas para adquirir favor em troca. E o amor ao próximo cada vez mais se distanciou.

Por hoje é só. Na próxima quinta feira, neste mesmo horário, a aula será sobre um trabalho de vocês e sobre as chances que vemos para conseguir uma união justa, honesta e com uma melhor distribuição de renda entre todos dentro do espírito do que lhes falei. Espero que formem grupos de cinco. A quantidade de folhas A4 é de no mínimo seis. Os dois lados da folha devem ser utilizados.

Tobias e Adauto ao saírem se encontraram com uns conhecidos que também cursavam Teologia. E entre uma conversa e outra, surgiu o assunto:
- Tobias, você gostou da primeira aula?
- Pra dizer a verdade, não.
- Então já sei que foi a do professor Elias.
- Como sabe?
Amigos, vocês caíram num trote.
- Trote? Ele não é professor?
- Que nada, ele é estudante. Há cinco anos vem tentando passar, coitado, mas não consegue. Aposto que falou sobre a verdade, sobre o homem, Deus, Universo, não foi?
- Foi isso mesmo.
- Todos os anos ele pega os novatos com esta historia que chamamos “Sermão da Verdade”
- Por que a Universidade permite uma coisa destas?
- Na próxima aula vocês vão receber as orientações do coordenador do curso e uma dos assuntos é sobre aceitar sem questionar. Algum de vocês interviu nas ponderações dele?
- Claro que não.
- Neste curso são mais do que necessários os questionamentos.
- Não sei porque me meti nisso!
- Tem calma, Tobias. Você vai ser um iluminado quando terminar o curso.



* * *