O Relojoeiro
" Nada é mais poderoso do que
uma
idéia que chegou
no tempo certo."
Victor Hugo
Há muitos anos, conheci um relojoeiro cuja dedicação
pelos relógios de parede o destacava dos demais profissionais do ramo e todos
na cidade o conheciam por “Meyer relojoeiro”, a oficina era em sua própria
casa, o que contribuía para tornar o horário de trabalho interminável, e
consertos difíceis eram passatempo; ao descobrir o defeito, sentia a alma
renovada, e quando algumas vezes, o corpo, a vista, indicavam que era chegado o
momento de parar, resistia; a idéia de não ter o que fazer o impulsionava mais
e mais ao trabalho, e driblava o cansaço limpando e polindo as ferramentas até
que as badaladas da meia noite nos mais variados tons indicasse a hora de se recolher
e num desses serões, após a melodia da zero hora, notou um relógio parado; ficou
surpreso, pois durante o dia funcionou com perfeição, agora os ponteiros
estavam superpostos no número doze; cansado, sem coragem àquela hora,
entregou-se ao repouso, mas não conseguiu dormir e, no estado de torpor, quando
não se distingue sonho de realidade, pensou: “interessante, não é a
primeira vez que conserto este relógio e
sempre os ponteiros ficam superpostos, no ano passado aconteceu a mesma coisa,
a engrenagem estava perfeita, os ponteiros não se tocavam, portanto, não deviam
parar e ouviu uma voz: “não sabe que nós, ponteiros, também temos os mesmos
problemas que vocês humanos e que precisamos de tempo para conversar, nos
entender e nos amar?”; assustou-se no que ouviu: “não, não acredito no que estou
ouvindo, devo estar cansado ou enlouquecido” e de novo a voz: “acredite no que
está escutando, quem lhe fala é o ponteiro dos segundos, o responsável pela
vida dos outros dois; e o relojoeiro respondeu, “podem os ponteiros falar,
pensar? – “sim, e também agir, a hora e
o minuto formam um casal, e estão sujeitos ao dia a dia de encontros,
desencontros, ....” Meyer saiu do torpor e comentou em voz alta: “Hoje não estou bem, preciso
descansar, trabalhei demais; estou atribuindo sentimentos aos ponteiros!”
No dia seguinte, veio-lhe a idéia de mudar o mecanismo
dos relógios, criar engrenagens, fazer os ponteiros pararem juntos e que com um
simples toque voltassem a funcionar com a hora e os minutos atualizados, assim
discutiriam com mais calma os problemas que os afligem: “Meu Deus, estou mesmo
louco, estava dormindo ou acordado? terá sido sonho? O dia que agora vivo, é
real ou imaginário? De onde veio a voz? Será que pretende me ensinar a
trabalhar, logo eu que não admito sugestão? Essas perguntas tornaram-se fixas,
obsessivas e, dia após dia, pensava em encontrar uma solução fabricando peças,
iniciando a montagem e, no fim de algumas semanas, concluiu o trabalho; radiante,
pendurou o relógio na parede e comentou: “hoje vocês terão tempo para conversar;
espero que, daqui por diante, quando estiverem juntos, se encontrem, mas ao
voltarem a funcionar, não atrasem, indiquem a hora e os minutos certos, com
precisão”; durante toda a semana o funcionamento foi perfeito: nenhum minuto ou
mesmo segundo foi prejudicado; entusiasmado com o feito, esqueceu que era
chegado o dia da devolução daquela máquina conforme prometido ao dono, e a
angústia voltou a lhe perturbar com a idéia de encontrar uma alternativa para
não devolvê-lo e, viu que a solução, seria alegar que o relógio não tinha mais
conserto; que era melhor vendê-lo e comprar outro; que aquele se prestava
apenas, para a retirada de algumas peças e a decisão caberia ao dono: vender ou
ficar para relíquia, e no dia da entrega, estava nervoso, a concentração falha,
o trabalho difícil; quando o dono chegou, perguntou: Você quer ficar com ele?
Me dê qualquer trocado e será seu; a emoção redobrou, pois aquele relógio lhe
revelara que até os mecanismos de aço precisam ter descanso e deste dia em
diante, todas as vezes que olhava para os ponteiros os via pessoas, e para
tanto, deveria dar-lhes conforto por cumprirem a jornada de trabalho e duas
vezes por dia permitia-lhes a chance de estarem juntos; numa delas, o tempo era
bem maior; o relógio não mais se atrasou ou se quebrou, mesmo após a morte de
Meyer, quando passou pelas mãos de outras pessoas que se comprometerem a dar continuidade
à operação.
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