quarta-feira, 14 de maio de 2014

Hora da Renovação



Renovação


“A alma do homem é como água; 
vem do céu e sobe para o céu, 
para depois voltar à Terra, 
em eterno ir e vir.”

                      Goethe


Quando se é jovem tudo se ajusta se encaixa, desde a escuta do simples som de um tambor aos dos mais sofisticados instrumentos. O corpo pede a perfeição, a música a partitura. A regência é onipotência, onisciência. Não existe o amanhã. Tudo é o presente, o agora.
No entanto, nada disso é duradouro. Com o passar do tempo, inicia-se novo ciclo. O corpo sinaliza; o cansaço exige passos lentos, atitudes moderadas. O homem atônito, sem saber o porquê, procura alento. Busca a religião. A dança troca de ritmo. Os acordes suaves o encaminha á mudança.
 É chegada a hora. Hora da partida. Hora da renovação.


* * *

sexta-feira, 11 de abril de 2014


O Relojoeiro

                        " Nada é mais poderoso do que
  uma idéia que chegou
 no tempo certo."

                                                Victor Hugo


Há muitos anos, conheci um relojoeiro cuja dedicação pelos relógios de parede o destacava dos demais profissionais do ramo e todos na cidade o conheciam por “Meyer relojoeiro”, a oficina era em sua própria casa, o que contribuía para tornar o horário de trabalho interminável, e consertos difíceis eram passatempo; ao descobrir o defeito, sentia a alma renovada, e quando algumas vezes, o corpo, a vista, indicavam que era chegado o momento de parar, resistia; a idéia de não ter o que fazer o impulsionava mais e mais ao trabalho, e driblava o cansaço limpando e polindo as ferramentas até que as badaladas da meia noite nos mais variados tons indicasse a hora de se recolher e num desses serões, após a melodia da zero hora, notou um relógio parado; ficou surpreso, pois durante o dia funcionou com perfeição, agora os ponteiros estavam superpostos no número doze; cansado, sem coragem àquela hora, entregou-se ao repouso, mas não conseguiu dormir e, no estado de torpor, quando não se distingue sonho de realidade, pensou: “interessante, não é a primeira  vez que conserto este relógio e sempre os ponteiros ficam superpostos, no ano passado aconteceu a mesma coisa, a engrenagem estava perfeita, os ponteiros não se tocavam, portanto, não deviam parar e ouviu uma voz: “não sabe que nós, ponteiros, também temos os mesmos problemas que vocês humanos e que precisamos de tempo para conversar, nos entender e nos amar?”; assustou-se no que ouviu: “não, não acredito no que estou ouvindo, devo estar cansado ou enlouquecido” e de novo a voz: “acredite no que está escutando, quem lhe fala é o ponteiro dos segundos, o responsável pela vida dos outros dois; e o relojoeiro respondeu, “podem os ponteiros falar, pensar? – “sim,  e também agir, a hora e o minuto formam um casal, e estão sujeitos ao dia a dia de encontros, desencontros, ....” Meyer saiu do torpor  e comentou em voz alta: “Hoje não estou bem, preciso descansar, trabalhei demais; estou atribuindo sentimentos aos ponteiros!”

No dia seguinte, veio-lhe a idéia de mudar o mecanismo dos relógios, criar engrenagens, fazer os ponteiros pararem juntos e que com um simples toque voltassem a funcionar com a hora e os minutos atualizados, assim discutiriam com mais calma os problemas que os afligem: “Meu Deus, estou mesmo louco, estava dormindo ou acordado? terá sido sonho? O dia que agora vivo, é real ou imaginário? De onde veio a voz? Será que pretende me ensinar a trabalhar, logo eu que não admito sugestão? Essas perguntas tornaram-se fixas, obsessivas e, dia após dia, pensava em encontrar uma solução fabricando peças, iniciando a montagem e, no fim de algumas semanas, concluiu o trabalho; radiante, pendurou o relógio na parede e comentou: “hoje vocês terão tempo para conversar; espero que, daqui por diante, quando estiverem juntos, se encontrem, mas ao voltarem a funcionar, não atrasem, indiquem a hora e os minutos certos, com precisão”; durante toda a semana o funcionamento foi perfeito: nenhum minuto ou mesmo segundo foi prejudicado; entusiasmado com o feito, esqueceu que era chegado o dia da devolução daquela máquina conforme prometido ao dono, e a angústia voltou a lhe perturbar com a idéia de encontrar uma alternativa para não devolvê-lo e, viu que a solução, seria alegar que o relógio não tinha mais conserto; que era melhor vendê-lo e comprar outro; que aquele se prestava apenas, para a retirada de algumas peças e a decisão caberia ao dono: vender ou ficar para relíquia, e no dia da entrega, estava nervoso, a concentração falha, o trabalho difícil; quando o dono chegou, perguntou: Você quer ficar com ele? Me dê qualquer trocado e será seu; a emoção redobrou, pois aquele relógio lhe revelara que até os mecanismos de aço precisam ter descanso e deste dia em diante, todas as vezes que olhava para os ponteiros os via pessoas, e para tanto, deveria dar-lhes conforto por cumprirem a jornada de trabalho e duas vezes por dia permitia-lhes a chance de estarem juntos; numa delas, o tempo era bem maior; o relógio não mais se atrasou ou se quebrou, mesmo após a morte de Meyer, quando passou pelas mãos de outras pessoas que se comprometerem a dar continuidade à operação.

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terça-feira, 8 de abril de 2014

O retorno


“ Nunca diga dessa água jamais beberei.”
Autor desconhecido


  “... eu voltarei, acredite. Não se desespere. toda ida tem volta. Tudo que molha, Tudo que sobe, desce.”

Patrícia após ouvir aquela voz saiu do quarto cabisbaixa, deprimida, desconfiada, vazia de pensamento. Aos poucos as idéias foram surgindo, clareando. A razão se recompôs. Sem mágoas, sem rancor, o corpo e a alma postos à disposição. O corpo forte, firme. A alma comedida, alerta.

“A porta e janelas fechadas! Eu estava só! Quem então falou tão próximo de mim? Cheguei até sentir alguém  respirar próximo a minha nuca. Meu Deus será que foi ele? Não acredito nessas coisas. Heleno está morto eu mesma fui ao enterro dele, como posso estar sentindo a sensação de que ele está próximo a mim? Na minha mente só me lembro da última conversa que tivemos antes da morte dele. “Voce não pode morrer agora. Lembre-se da nossa promessa. Quem for primeiro sem se despedir voltará para cumprir a promessa. Ele apenas me escutou e nada respondeu
Como posso ter escutado sua voz tão claramente? Devo estar estressada. Não pode ter sido ele. Também foram muitos os dias que passei ao seu lado acompanhando, de perto, seu sofrimento! Acho que deve ter sido por isso. Vou acender uma vela. Vou rezar um pouco.”

Mal terminou o Pai Nosso a vela se apagou.

“Não acredito! Por que a vela se apagou? Não tem corrente de ar neste quarto!”

E, de novo escutou a voz.

“Está esquecida do nosso trato? Não combinamos para voltar de onde estivermos para avisar ao outro se poderia voltar? Não poderei dizer onde estou, nem o que vejo.   

“Meu Deus! È você mesmo, Heleno?”

“Sim, Heleno, seu namorado que continua a te amar em todas nossas vidas. Espere por mim. Em breve voltarei. Assim daremos continuidade a nossa união que por acidente alheio a nossa vontade nos foi privada.”
                            

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segunda-feira, 24 de março de 2014


AMARGO DA VIDA


                                       “ A violência é criada pela desigualdade;
                                          a não-violência, pela igualdade.”

Mahatma Gandhi

 Os trovões anunciavam a esperança de vida, a fartura para o povo sofrido. O temporal desabou.
As crianças corriam, pulavam e gritavam sob a chuva. Para todos, motivo de alegria. O tão esperado dezenove de março, dia de São José, trouxera o inverno em toda a região do agreste nordestino.
Pela janela José Severino observava o vai-e-vem das crianças: Ah! Que falta tenho daqueles bons tempos, quantos amigos, quantas brincadeiras. As estórias assustadoras e de aventuras de caçador. Onde estará seu Bené? Será que ainda vive? Nunca mais me trouxeram notícias dele. Vou perguntar a Tonho quando passar por aqui.

José vivia limitado a quatro paredes, companheiras da solidão, e as lembranças da juventude. Se distraia com o próprio pensamento. Ficava horas a fio lembrando-se do tempo em que podia viver com vigor e energia:

“Daqui a um mês os umbuzeiros devem ter frutos maduros. Como era bom sentar à sua sombra e comer umbu, esperar a revoada dos marrecos na boca da noite, atirar de badoque, andar descalço pela terra molhada, sentir o cheiro do mato, tomar banho no riacho, beber daquela água cristalina e voltar pra casa sem se importar com a hora. Estas lembranças alimentam minha alma, trás esperanças, fortalece a resignação para não me tornar louco. Se algum dia elas me faltarem acho que enlouquecerei.”

De costas para a janela recostou-se na cama e continuou a pensar. As recordações, aos poucos, tornavam-se mais recentes:
“Será que Adelaide já casou? Ah! A vida foi malvada comigo. Podia ter sido tão feliz.”

A angustia logo se instalou e veio pesada. Para não se deixar levar ao desespero, levantou-se da cama. Caminhava de um lado para o outro no pequeno compartimento, até que o cansaço o dominou. Deitou-se, dormiu.
Filho de agricultores, muito cedo aprendeu a lidar com a terra. Os pais sobreviviam do fabrico de farinha de mandioca. No dia da torragem era o costume da região  realizar uma festa. Numa dessas, conheceu Adelaide, moça morena e formosa, de andar faceiro e riso aberto. Os freqüentes passeios atearam fogo e logo José se apaixonou. O namoro durou pouco. Constantes dores de cabeça o impediam de acompanhar Adelaide. O médico local sem ter um diagnóstico formado, o mandou ir a um centro mais adiantado. 
 Sem saber se movimentar na capital, o pai o acompanhou na viagem que fizera de trem. Na volta, ele pensou:

 “Esta tal de Recife que muitos falam, não tem graça. É só agitação. Gente para lá e para cá, parece que não têm o que fazer! Queria ver esse pessoal lá na roça, com uma enxada na mão cavando o chão, arrancando mandioca. Se a metade dos que vi por aqui fosse para a lavoura, nossa terra seria outra.”

Os exames indicaram ser problema de vista. Precisava usar óculos. O grau da miopia era forte. Exigia grossas lentes. Após usar por uma semana, as dores de cabeça sumiram. Mas, um outro problema surgiu. O rosto se transformara. Os olhos vistos através das lentes deixavam-no envelhecido. Parecia um abobalhado. As conquistas tão freqüentes, estavam dificultadas. Adelaide, mulher dos seus sonhos e de tantos forrós, se esquivou de acompanhá-lo.
No dia de São José fazia aniversário. Na tentativa de superar os problemas, aproveitou a festa do santo dia para convidar os amigos para irem a um forró onde comemorariam o aniversário. Adelaide, num vestido estampado, acima do joelho, ombros nus, estava mais formosa do que nunca. Enciumado por vê-la dançando, deixou o bar e entrou no salão:

- Coma vai Adelaide? Faz tempo que chegou?
- Sim. O forró está é bom. E continuou a dançar sem lhe dar importância. Acabrunhado, deu meia volta. Dirigia-se ao bar improvisado com tábuas rústicas e palha de coqueiro que ficava ao fundo da palhoça, quando encontrou um amigo:
 - Pedro, como vai rapaz? Sabe que hoje é meu aniversário?
- É mesmo? Então vamos beber.
- Tonho, bota aí uma da garrafada de jurubeba para mim.   Hoje a bebida é por minha conta.

Mal foi servida uma rodada, pedia outra. Após tomar umas quatro, viu algumas moças encostadas na mureta de palha que delimitava o terreiro de chão batido. Com a bebida fazendo efeito, saiu ao encontro delas e tirou uma para dançar. Calçado com botas de vaqueiro saiu pisando e atropelando tudo o que lhe aparecia no caminho. No meio do salão, deparou-se, a menos de dois palmos, com Adelaide que colada dos pés a cabeça, dançava de olhos fechados sem se importar com o mundo. Aquilo para ele foi mesmo que uma punhalada. Num movimento brusco, largou a moça e saiu do salão:
- Tonho me dá mais uma.
- Vai devagar José. A noite ainda nem começou.
- Que nada. Hoje estou pra tudo.
Pedro que assistiu a cena, preocupado com o que poderia ocorrer disse:

- Irmão, o que está acontecendo? Estou admirado. Nunca o vi beber assim tão depressa!

- Você esqueceu que é o meu aniversário. Com as chuvas da tarde nossa lavoura está garantida. Por isto estou alegre.
- Será mesmo isso, José? Ou será por causa de mulher?
- Está besta homem. Beber por causa de mulher. Nem quero pensar. Aquilo é uma mulher desavergonhada.
- Deixe ela para lá. Veja quantas moças tem sobrando. Vou tirar uma para dançar. Você não vem?
- Daqui a pouco. Tonho, bota mais uma
.
A língua embolada dificultava a fala. Tonho notando o estado de embriaguez em que ele estava, nada mais comentou. Fez-lhe um gesto de desaprovação com a cabeça, serviu o pedido. De um único gole José virou o copo, deu um passo, cambaleou, aprumou-se, subiu as calças e entrou no salão:

- Adelaide. Esta dança é comigo.

Sem esperar resposta, tomou-a do parceiro. Aquela ação provocou uma reação imediata do outro que lhe deu um empurrão. José se livrou dos braços de Adelaide que o agarrava pela cintura e sacou da cintura uma faca. Deu cinco peixeiradas no rapaz:
- Isto é para aprender a não tomar a mulher de um homem, cabra da peste.

E saiu pelo salão ainda com a faca em punho, como se nada tivesse acontecido. Todos os olhavam admirados sem acreditar que uma pessoa tão calma era capaz de uma atitude daquela. Ao tentar subir no cavalo, os policiais o prenderam.
Três anos se passaram sem que fosse julgado do crime. A janela da cela era a única visão que o fazia lembrar-se do amargo da vida.


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sexta-feira, 14 de março de 2014

Ilusão?


Hora de renovar a crença.


- Você vai conseguir sair desta tempestade?
- Enquanto perdurar esta ganância, sei não, Carlos. Eles vão se rebentar mais à frente. Tenho pena dos milhares de trabalhadores espalhados por todo o país. Um dia irão perder a esperança.

O presidente da Cooperativa Terra e Mar lia o jornal enquanto um amigo, jornalista, o questionava:

- Preparam a armação para os covos, incentivam a pescaria, mas, na hora de dividir o peixe dá tudo errado. A partição não é justa. Administrar uma cooperativa, deste porte envolve um mundo de gente a querer concessão. Com isso gera-se a instabilidade e dificulta a implantação do projeto. 
- E você, por quanto tempo ainda suportará esta pressão? Continua acreditando que irá implantá-lo.
- Sou nordestino, nasci pobre, estudei em escolas públicas, mas tenho orgulho do que aprendi até hoje.  Quando resolvi ser presidente desta cooperativa, sabia que teria dificuldades. Agradar a todos não é fácil. Preciso confiar nos meus assessores, até que me provem o contrário. Vou insistir.
- Mas, o que eles lhe deram em troca?
- Fora as tempestades, calmarias. Avanços significativos. A cooperativa cresceu até mais do que eu esperava. Em alguns setores diria que foi até bom, melhor do que nas gestões anteriores. Mas a ganância de muitos vem estragando o que se construiu. Reconheço que uma boa limpeza será necessária para descobrir onde estão as eras daninhas que contribuem para o apodrecimento dos produtos da cooperativa. Do contrário a produção será um fracasso total.
- Vai ser uma batalha difícil.
- Mas não impossível se conseguir pegar o fio da meada. Você é testemunha que fizemos algumas melhorias. As respostas vieram rápidas: a produção cresceu, a Cooperativa sobressaiu-se. Quem não a conhecia por dentro a imaginou sólida. As filiais por todo o Brasil davam sinais de prosperidade. O mercado com o exterior foi acelerado e podemos vender a preços competitivos. Firmas internacionais acreditaram nos resultados de curto prazo. Atribuíam o crescimento aos planos da nova administração e o entusiasmo dos empregados. Com isto trouxemos o capital estrangeiro. A nova fase deu esperança a todos.
- Por que então não conseguiu manter o ritmo?
- Ah! Meu amigo. A ganância.
- Não acredita que a omissão de alguns foi um fator que mais pesou para esconder a flora de eras daninhas?
- Não propriamente a omissão. Diria que faltou uma ação conjunta de todos. A cooperativa precisa ser administrada com um único objetivo; o crescimento de todos.
- Mas isto é impossível. Os interesses estão acima de tudo. Não vejo saída Você está numa enrascada. Todo dia surgem novidades. Lembre-se que a cooperativa tem muitos sócios. Administrar sozinho é impossível. Novos sócios irão surgir com soluções as mais miraculosas possíveis. Para os projetos saírem do papel você irá precisar da aprovação e consenso deles. Diga-me a verdade, você tem saída?
- Tenho. Vou investir com todas as forças. Se perder a esperança a administração será um fracasso.
- Não seria melhor entregar o cargo?
- De jeito nenhum. O compromisso assumido me impede. Tenho de renovar a crença. Eles precisam ver a cooperativa em pleno progresso.
- Carlos, já está na hora de mudar. Seja contundente, mais ousado. Desagrade a alguns, mas cumpra o prometido. Arme-se de coerência. Um pulso forte nestas horas é preciso. Lembre-se que muitos estão esperançosos. Não os desiluda.
- Isto é tudo o que não desejo. Deus irá me ajudar na escolha dos novos sócios. Se errar desta vez, será o caos.
- Serei sincero com você. Se desta vez cometer qualquer falha pode abandonar a cooperativa ou eles lhe crucificarão vivo.


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                                                  Perpétua

                   Tudo tem um motivo de ser. Nada acontece por acaso.


O céu em poucos minutos escurecera. As estrelas brilharam na falsa noite quando o sol na autoridade de rei permitiu a lua lhe fazer sombra; sinal de agouro entre muitos, inclusive Lúcio Lucas Leão que naquele momento, recebia notícias de Perpétua:
- Pai, eu não entendo Deus. Onde Ele está numa hora desta? Se Perpétua morrer eu nunca O perdoarei.
- Lucas, entender os nossos semelhantes já é difícil, imagine as coisas Divinas. Meu filho, você é jovem, tem muito o que aprender, não As questione. Tudo tem um motivo de ser. Nada acontece por acaso.
- Isto não é justo.
Enfurecido saiu da sala resmungando, respirava ódio. Nunca aceitava um assunto sem antes discuti-lo até entender as razões expostas. Depois as defendia quaisquer que fossem as conseqüências.

No dia seguinte, foi até a casa de Perpétua. Na porta do quarto parou e ficou a observá-la sentada na cama. Distraia-se com os pardais que pulavam de galho em galho na alegria da liberdade. A doença interferia nas horas, nos minutos, nos segundos tornando-os mais velozes; o tempo espremido. As forças do vigor da vida pareciam minguar. Rosto pálido, olhos envoltos por anéis escuros, lábios secos. Ainda assim continuava bela:
- Perpétua, posso entrar.
- Lucas! Mais claro que pode, entre, sente aqui perto de mim.
- Trouxe umas coisas pra você, não sei se acertei seu gosto, mas me esforcei.
- E acertou mesmo. Adoro biscoitos, flores. Onde conseguiu estas rosas amarelas, são tão difíceis por aqui! Elas  são lindas.
- Com um japonês que agora apareceu no mercado novo.
- Lucas, você pode chamar a enfermeira pra mim. Eu quero colocá-las num jarro. Espero que durem bastante. Depois você me coloca na cadeira para irmos até o jardim.

Entre um e outro canteiro ela comentava:

- Antes de adoecer todos os dias aguava as plantas.
Gosto de sentir o cheiro das flores, da terra úmida. São cheiros que nos faz lembrar o passado, cheiros da infância. Lucas, você também gosta de observar a natureza?
- Gosto, e ao seu lado mais ainda.
- Tem sido tão bom comigo. A única coisa boa que esta doença me trouxe foi você. Gosto de estar ao seu lado. Quando melhorar, iremos passear.
- Sim, iremos à praia.
- É mesmo. Estou muito branca. Preciso tomar sol. Depois que adoeci poucos minutos fico aqui no jardim. 
- Os colegas vieram vê-la?
- Não, só você. Acho que eles têm medo de mim.
- Que besteira, Perpétua. Não vieram porque, quase todos, ficaram em recuperação. Eu e mais uns quatro ou cinco tivemos sorte, passamos direto. Por isso estou aqui.
- Deixe pra lá. Hoje nada estragará meu dia. Quer namorar comigo?
- É tudo o que desejo. Aguardava uma oportunidade para lhe dizer o quanto gosto de você.

Curvado sobre a cadeira de rodas a beijou. Os olhos de Perpétua se encheram de lágrimas:
- Você costuma rezar?
- Para que falar nisso?
- Eu quero me curar. Eu quero viver.

Embora o céu estivesse sem nuvens e o Sol forte, as mãos de Perpétua estavam frias. Precisava sair dali o mais rápido possível. Ela continuava falando. A voz se distanciava cada vez mais, porém ele nada entendia. E, levantando a voz ela disse:

- Lucas, você está me ouvindo?
- Desculpe. Estava distante, pensava no trabalho que ainda hoje tenho que fazer para ajudar um colega. Ele também vai fazer Medicina. Perpétua, eu preciso ir. Amanhã voltarei nesta mesma hora. Agora, deixe-me beijá-la.

Com muito esforço consegui levantar o corpo e o beijou:

- Obrigada por tudo, Lucas.
-Não há motivo para me agradecer. Amanhã estarei aqui.  

O trabalho de química para o colega foi concluído naquele mesmo dia. Agora quanto mais estudava mais vontade tinha. Ser médico tornara-se uma obsessão. Problema difícil, sinônimo: desafio. Desligar-se de uma questão só com a resposta certa. Um campo aberto para a intromissão do cansaço, do stress. Precisava parar. O relógio bateu meia-noite. Um arrepio seguido por um aperto no coração trouxe a lembrança de Perpétua.
“Será que dormiu ou está acordada, cheia de dores? Paciência, minha querida, em breve ficará boa. Aparecerá um modo de curá-la. Se não for Deus, será um mortal que tornará seus dias mais confortáveis, mais cheios de vida. Para isto, resista. Não se entregue, não se deixe levar pelo desespero. Encontre na doença força. Lute em defesa da vida. Pense em quanto ainda tem para desfrutar e perpetuar sua existência.”

A noite foi angustiante. Na hora do café,  o pai aproximou-se devagar:

- Lucas, não tenho boas notícias.
- Perpétua?
- Sim. Ontem à noite.

De cabeça baixa escutava o que ainda seria dito para machucar, ferir o corpo e a alma.

- Pelo menos deixou de sofrer. Soubemos há pouco.

O desabafo veio forte:

- Por que meu Deus? Por que tirar uma vida tão jovem. Nem quinze anos completos tinha! Que pecados poderia ter?

Saiu da sala sem levantar a vista. Estava desiludido, ofendido, abatido. Queria vê-la, segurar-lhe a mão. Com isso, quem sabe ela não ganharia um pouco de segurança na viagem sem volta. O sangue fervia, formigava o corpo e permitia o ódio incendiar a alma. Sem se conter deixou vir a explosão: “Se é tão poderoso como dizem por que não sai em defesa dos necessitados? Onde está SEU coração? Deixar pessoas inocentes morrerem? Trazer infelicidade aos que ficam? Isto não é comportamento Divino. Porque é DEUS acredita que pode fazer isto? Desta forma também serei UM. Eu me preocupo com os outros. Dedicar-me-ei ainda mais à medicina para LHE provar que sou mais humano. A minha vida pertencerá aos meus semelhantes. Quero proporcionar-lhes mais conforto, mais felicidade, mais paz de espírito.

O caminho para casa foi pela Avenida Beira Mar. Precisava de ar puro. A maré baixa convidava a caminhar sem sapatos. A umidade e frieza da areia massageando os pés, diminuindo as tensões. O Sol logo nasceria. Pouco a pouco o negro da escuridão cedia à cinza, à prata, à luz. Luz que vinha com força, com brilho, de meio dia, de um verão sem nuvem. Estava difícil desviar os olhos daquele esplendor. Atordoado, ouvindo uma voz, caiu de joelhos com a mão nos olhos:
 “Lucas, Lucas, o que queres provar? Por que me desafias? A dúvida é tua inimiga. Fazes a tua parte. Não te preocupes em fazer mais do que podes. Eu cuidarei a partir de onde ficares.”

Outras vozes castigaram o silêncio do culpado:

- Mateus, aquele não é Lucas, que está ali deitado na areia.
- Parece. Vamos lá.
- Lucas, o que faz aqui? Precisa de ajuda?
- Não. Estou bem. Foi só um cochilo. Coisas do cansaço.
- Amigo é perigoso dormir aqui sem ninguém por perto.
- Eu sei, obrigado.
- Até outra hora, Lucas.
- Até, mais uma vez obrigado.
- De nada. Se cuida rapaz.

A manhã se instalou. Trazia o sol limpo a iluminar tudo em que seus raios tocavam. No caminho de casa as palavras continuaram a soar vivas num tom forte e melodioso.
Naquele dia a concentração no trabalho estava difícil. Pela primeira vez estava desanimado, sentia uma sensação de vazio na alma. Seria melhor voltar para casa.

Na manhã seguinte veio o arrependimento:

“A Sua luz, a Sua voz, Sua palavra, trás segurança, nos dá ânimo; Reforça o compromisso com a responsabilidade. Queria agradecer-LHE pelo que nos permite fazer pelo próximo. Suplicar-LHE-ia ainda, sempre nos acompanhar na incansável busca para dar felicidade ao próximo.”

Ainda hoje vejo Perpétua sorrindo como no primeiro e único dia de namoro.

                                                             * * *