sexta-feira, 23 de agosto de 2019
quarta-feira, 14 de maio de 2014
Hora da Renovação
Renovação
“A alma do homem é como água;
vem do céu
e sobe para o céu,
para depois voltar à Terra,
em eterno ir e vir.”
Goethe
Quando se é jovem tudo se ajusta se encaixa, desde a escuta
do simples som de um tambor aos dos mais sofisticados instrumentos. O corpo
pede a perfeição, a música a partitura. A regência é onipotência, onisciência.
Não existe o amanhã. Tudo é o presente, o agora.
No entanto, nada disso é duradouro. Com o passar do tempo,
inicia-se novo ciclo. O corpo sinaliza; o cansaço exige passos lentos,
atitudes moderadas. O homem atônito, sem saber o porquê, procura alento. Busca
a religião. A dança troca de ritmo. Os acordes suaves o encaminha á mudança.
É
chegada a hora. Hora da partida. Hora da renovação.
* * *
sexta-feira, 11 de abril de 2014
O Relojoeiro
" Nada é mais poderoso do que
uma
idéia que chegou
no tempo certo."
Victor Hugo
Há muitos anos, conheci um relojoeiro cuja dedicação
pelos relógios de parede o destacava dos demais profissionais do ramo e todos
na cidade o conheciam por “Meyer relojoeiro”, a oficina era em sua própria
casa, o que contribuía para tornar o horário de trabalho interminável, e
consertos difíceis eram passatempo; ao descobrir o defeito, sentia a alma
renovada, e quando algumas vezes, o corpo, a vista, indicavam que era chegado o
momento de parar, resistia; a idéia de não ter o que fazer o impulsionava mais
e mais ao trabalho, e driblava o cansaço limpando e polindo as ferramentas até
que as badaladas da meia noite nos mais variados tons indicasse a hora de se recolher
e num desses serões, após a melodia da zero hora, notou um relógio parado; ficou
surpreso, pois durante o dia funcionou com perfeição, agora os ponteiros
estavam superpostos no número doze; cansado, sem coragem àquela hora,
entregou-se ao repouso, mas não conseguiu dormir e, no estado de torpor, quando
não se distingue sonho de realidade, pensou: “interessante, não é a
primeira vez que conserto este relógio e
sempre os ponteiros ficam superpostos, no ano passado aconteceu a mesma coisa,
a engrenagem estava perfeita, os ponteiros não se tocavam, portanto, não deviam
parar e ouviu uma voz: “não sabe que nós, ponteiros, também temos os mesmos
problemas que vocês humanos e que precisamos de tempo para conversar, nos
entender e nos amar?”; assustou-se no que ouviu: “não, não acredito no que estou
ouvindo, devo estar cansado ou enlouquecido” e de novo a voz: “acredite no que
está escutando, quem lhe fala é o ponteiro dos segundos, o responsável pela
vida dos outros dois; e o relojoeiro respondeu, “podem os ponteiros falar,
pensar? – “sim, e também agir, a hora e
o minuto formam um casal, e estão sujeitos ao dia a dia de encontros,
desencontros, ....” Meyer saiu do torpor e comentou em voz alta: “Hoje não estou bem, preciso
descansar, trabalhei demais; estou atribuindo sentimentos aos ponteiros!”
No dia seguinte, veio-lhe a idéia de mudar o mecanismo
dos relógios, criar engrenagens, fazer os ponteiros pararem juntos e que com um
simples toque voltassem a funcionar com a hora e os minutos atualizados, assim
discutiriam com mais calma os problemas que os afligem: “Meu Deus, estou mesmo
louco, estava dormindo ou acordado? terá sido sonho? O dia que agora vivo, é
real ou imaginário? De onde veio a voz? Será que pretende me ensinar a
trabalhar, logo eu que não admito sugestão? Essas perguntas tornaram-se fixas,
obsessivas e, dia após dia, pensava em encontrar uma solução fabricando peças,
iniciando a montagem e, no fim de algumas semanas, concluiu o trabalho; radiante,
pendurou o relógio na parede e comentou: “hoje vocês terão tempo para conversar;
espero que, daqui por diante, quando estiverem juntos, se encontrem, mas ao
voltarem a funcionar, não atrasem, indiquem a hora e os minutos certos, com
precisão”; durante toda a semana o funcionamento foi perfeito: nenhum minuto ou
mesmo segundo foi prejudicado; entusiasmado com o feito, esqueceu que era
chegado o dia da devolução daquela máquina conforme prometido ao dono, e a
angústia voltou a lhe perturbar com a idéia de encontrar uma alternativa para
não devolvê-lo e, viu que a solução, seria alegar que o relógio não tinha mais
conserto; que era melhor vendê-lo e comprar outro; que aquele se prestava
apenas, para a retirada de algumas peças e a decisão caberia ao dono: vender ou
ficar para relíquia, e no dia da entrega, estava nervoso, a concentração falha,
o trabalho difícil; quando o dono chegou, perguntou: Você quer ficar com ele?
Me dê qualquer trocado e será seu; a emoção redobrou, pois aquele relógio lhe
revelara que até os mecanismos de aço precisam ter descanso e deste dia em
diante, todas as vezes que olhava para os ponteiros os via pessoas, e para
tanto, deveria dar-lhes conforto por cumprirem a jornada de trabalho e duas
vezes por dia permitia-lhes a chance de estarem juntos; numa delas, o tempo era
bem maior; o relógio não mais se atrasou ou se quebrou, mesmo após a morte de
Meyer, quando passou pelas mãos de outras pessoas que se comprometerem a dar continuidade
à operação.
* * *
terça-feira, 8 de abril de 2014
O
retorno
“ Nunca diga dessa água jamais beberei.”
Autor
desconhecido
“... eu voltarei,
acredite. Não se desespere. toda ida tem volta. Tudo que molha, Tudo que
sobe, desce.”
Patrícia após
ouvir aquela voz saiu do quarto cabisbaixa, deprimida, desconfiada, vazia de
pensamento. Aos poucos as idéias foram surgindo, clareando. A razão se
recompôs. Sem mágoas, sem rancor, o corpo e a alma postos à disposição. O corpo
forte, firme. A alma comedida, alerta.
“A porta e
janelas fechadas! Eu estava só! Quem então falou tão próximo de mim? Cheguei até
sentir alguém respirar próximo a minha
nuca. Meu Deus será que foi ele? Não acredito nessas coisas. Heleno está morto
eu mesma fui ao enterro dele, como posso estar sentindo a sensação de que ele
está próximo a mim? Na minha mente só me lembro da última conversa que tivemos
antes da morte dele. “Voce não pode morrer agora. Lembre-se da nossa promessa.
Quem for primeiro sem se despedir voltará para cumprir a promessa. Ele apenas
me escutou e nada respondeu
Como posso ter
escutado sua voz tão claramente? Devo estar estressada. Não pode ter sido ele. Também
foram muitos os dias que passei ao seu lado acompanhando, de perto, seu sofrimento!
Acho que deve ter sido por isso. Vou acender uma vela. Vou rezar um pouco.”
Mal terminou o
Pai Nosso a vela se apagou.
“Não acredito!
Por que a vela se apagou? Não tem corrente de ar neste quarto!”
E, de novo
escutou a voz.
“Está esquecida
do nosso trato? Não combinamos para voltar de onde estivermos para avisar ao
outro se poderia voltar? Não poderei dizer onde estou, nem o que vejo.
“Meu Deus! È você
mesmo, Heleno?”
“Sim, Heleno,
seu namorado que continua a te amar em todas nossas vidas. Espere por mim. Em
breve voltarei. Assim daremos continuidade a nossa união que por acidente alheio
a nossa vontade nos foi privada.”
* * *
quinta-feira, 3 de abril de 2014
segunda-feira, 24 de março de 2014
AMARGO DA VIDA
“ A violência é criada pela desigualdade;
a não-violência, pela igualdade.”
Mahatma Gandhi
Os trovões anunciavam a esperança de vida, a
fartura para o povo sofrido. O temporal desabou.
As crianças corriam, pulavam e gritavam
sob a chuva. Para todos, motivo de alegria. O tão esperado dezenove de março,
dia de São José, trouxera o inverno em toda a região do agreste nordestino.
Pela janela José Severino observava o
vai-e-vem das crianças: Ah! Que falta tenho daqueles bons tempos, quantos
amigos, quantas brincadeiras. As estórias assustadoras e de aventuras de
caçador. Onde estará seu Bené? Será que ainda vive? Nunca mais me trouxeram
notícias dele. Vou perguntar a Tonho quando passar por aqui.
José vivia limitado a quatro paredes, companheiras
da solidão, e as lembranças da juventude. Se distraia com o próprio pensamento.
Ficava horas a fio lembrando-se do tempo em que podia viver com vigor e
energia:
“Daqui a um mês os umbuzeiros devem ter
frutos maduros. Como era bom sentar à sua sombra e comer umbu, esperar a
revoada dos marrecos na boca da noite, atirar de badoque, andar descalço pela
terra molhada, sentir o cheiro do mato, tomar banho no riacho, beber daquela
água cristalina e voltar pra casa sem se importar com a hora. Estas lembranças
alimentam minha alma, trás esperanças, fortalece a resignação para não me
tornar louco. Se algum dia elas me faltarem acho que enlouquecerei.”
De costas para a janela recostou-se na
cama e continuou a pensar. As recordações, aos poucos, tornavam-se mais
recentes:
“Será que Adelaide já casou? Ah! A vida
foi malvada comigo. Podia ter sido tão feliz.”
A angustia logo se instalou e veio
pesada. Para não se deixar levar ao desespero, levantou-se da cama. Caminhava
de um lado para o outro no pequeno compartimento, até que o cansaço o dominou.
Deitou-se, dormiu.
Filho de agricultores, muito cedo
aprendeu a lidar com a terra. Os pais sobreviviam do fabrico de farinha de
mandioca. No dia da torragem era o costume da região realizar uma festa. Numa dessas, conheceu
Adelaide, moça morena e formosa, de andar faceiro e riso aberto. Os freqüentes
passeios atearam fogo e logo José se apaixonou. O namoro durou pouco.
Constantes dores de cabeça o impediam de acompanhar Adelaide. O médico local
sem ter um diagnóstico formado, o mandou ir a um centro mais adiantado.
Sem saber se movimentar na capital, o pai o
acompanhou na viagem que fizera de trem. Na volta, ele pensou:
“Esta tal de Recife que muitos falam, não tem
graça. É só agitação. Gente para lá e para cá, parece que não têm o que fazer! Queria
ver esse pessoal lá na roça, com uma enxada na mão cavando o chão, arrancando mandioca.
Se a metade dos que vi por aqui fosse para a lavoura, nossa terra seria outra.”
Os exames indicaram ser problema de
vista. Precisava usar óculos. O grau da miopia era forte. Exigia grossas
lentes. Após usar por uma semana, as dores de cabeça sumiram. Mas, um outro
problema surgiu. O rosto se transformara. Os olhos vistos através das lentes
deixavam-no envelhecido. Parecia um abobalhado. As conquistas tão freqüentes,
estavam dificultadas. Adelaide, mulher dos seus sonhos e de tantos forrós, se
esquivou de acompanhá-lo.
No dia de São José fazia aniversário. Na
tentativa de superar os problemas, aproveitou a festa do santo dia para convidar
os amigos para irem a um forró onde comemorariam o aniversário. Adelaide, num
vestido estampado, acima do joelho, ombros nus, estava mais formosa do que
nunca. Enciumado por vê-la dançando, deixou o bar e entrou no salão:
-
Coma vai Adelaide? Faz tempo que chegou?
-
Sim. O forró está é bom. E continuou a dançar sem lhe dar importância.
Acabrunhado, deu meia volta. Dirigia-se ao bar improvisado com tábuas rústicas
e palha de coqueiro que ficava ao fundo da palhoça, quando encontrou um amigo:
-
Pedro, como vai rapaz? Sabe que hoje é meu aniversário?
-
É mesmo? Então vamos beber.
-
Tonho, bota aí uma da garrafada de jurubeba para mim. Hoje a
bebida é por minha conta.
Mal foi servida uma rodada, pedia outra.
Após tomar umas quatro, viu algumas moças encostadas na mureta de palha que
delimitava o terreiro de chão batido. Com a bebida fazendo efeito, saiu ao
encontro delas e tirou uma para dançar. Calçado com botas de vaqueiro saiu
pisando e atropelando tudo o que lhe aparecia no caminho. No meio do salão,
deparou-se, a menos de dois palmos, com Adelaide que colada dos pés a cabeça,
dançava de olhos fechados sem se importar com o mundo. Aquilo para ele foi mesmo
que uma punhalada. Num movimento brusco, largou a moça e saiu do salão:
-
Tonho me dá mais uma.
-
Vai devagar José. A noite ainda nem começou.
-
Que nada. Hoje estou pra tudo.
Pedro que assistiu a cena, preocupado
com o que poderia ocorrer disse:
-
Irmão, o que está acontecendo? Estou admirado. Nunca o vi beber assim tão
depressa!
-
Você esqueceu que é o meu aniversário. Com as chuvas da tarde nossa lavoura
está garantida. Por isto estou alegre.
-
Será mesmo isso, José? Ou será por causa de mulher?
-
Está besta homem. Beber por causa de mulher. Nem quero pensar. Aquilo é uma
mulher desavergonhada.
-
Deixe ela para lá. Veja quantas moças tem sobrando. Vou tirar uma para dançar.
Você não vem?
-
Daqui a pouco. Tonho, bota mais uma
.
A língua embolada dificultava a fala.
Tonho notando o estado de embriaguez em que ele estava, nada mais comentou.
Fez-lhe um gesto de desaprovação com a cabeça, serviu o pedido. De um único
gole José virou o copo, deu um passo, cambaleou, aprumou-se, subiu as calças e
entrou no salão:
- Adelaide.
Esta dança é comigo.
Sem esperar resposta, tomou-a do parceiro. Aquela ação
provocou uma reação imediata do outro que lhe deu um empurrão. José se livrou
dos braços de Adelaide que o agarrava pela cintura e sacou da cintura uma faca.
Deu cinco peixeiradas no rapaz:
- Isto é para
aprender a não tomar a mulher de um homem, cabra da peste.
E saiu pelo salão ainda com a faca em punho, como se nada
tivesse acontecido. Todos os olhavam admirados sem acreditar que uma pessoa tão
calma era capaz de uma atitude daquela. Ao tentar subir no cavalo, os policiais
o prenderam.
Três anos se passaram sem que fosse julgado do crime. A
janela da cela era a única visão que o fazia lembrar-se do amargo da vida.
* * *
sexta-feira, 14 de março de 2014
Ilusão?
Hora de renovar a
crença.
-
Você vai conseguir sair desta tempestade?
-
Enquanto perdurar esta ganância, sei não, Carlos. Eles vão se rebentar mais à
frente. Tenho pena dos milhares de trabalhadores espalhados por todo o país. Um
dia irão perder a esperança.
O presidente da Cooperativa Terra e Mar
lia o jornal enquanto um amigo, jornalista, o questionava:
-
Preparam a armação para os covos, incentivam a pescaria, mas, na hora de dividir
o peixe dá tudo errado. A partição não é justa. Administrar uma cooperativa,
deste porte envolve um mundo de gente a querer concessão. Com isso gera-se a
instabilidade e dificulta a implantação do projeto.
-
E você, por quanto tempo ainda suportará esta pressão? Continua acreditando que
irá implantá-lo.
-
Sou nordestino, nasci pobre, estudei em escolas públicas, mas tenho orgulho do
que aprendi até hoje. Quando resolvi ser
presidente desta cooperativa, sabia que teria dificuldades. Agradar a todos não
é fácil. Preciso confiar nos meus assessores, até que me provem o contrário.
Vou insistir.
-
Mas, o que eles lhe deram em troca?
-
Fora as tempestades, calmarias. Avanços significativos. A cooperativa cresceu
até mais do que eu esperava. Em alguns setores diria que foi até bom, melhor do
que nas gestões anteriores. Mas a ganância de muitos vem estragando o que se
construiu. Reconheço que uma boa limpeza será necessária para descobrir onde
estão as eras daninhas que contribuem para o apodrecimento dos produtos da
cooperativa. Do contrário a produção será um fracasso total.
-
Vai ser uma batalha difícil.
-
Mas não impossível se conseguir pegar o fio da meada. Você é testemunha que
fizemos algumas melhorias. As respostas vieram rápidas: a produção cresceu, a
Cooperativa sobressaiu-se. Quem não a conhecia por dentro a imaginou sólida. As
filiais por todo o Brasil davam sinais de prosperidade. O mercado com o
exterior foi acelerado e podemos vender a preços competitivos. Firmas
internacionais acreditaram nos resultados de curto prazo. Atribuíam o crescimento
aos planos da nova administração e o entusiasmo dos empregados. Com isto
trouxemos o capital estrangeiro. A nova fase deu esperança a todos.
-
Por que então não conseguiu manter o ritmo?
-
Ah! Meu amigo. A ganância.
-
Não acredita que a omissão de alguns foi um fator que mais pesou para esconder
a flora de eras daninhas?
-
Não propriamente a omissão. Diria que faltou uma ação conjunta de todos. A
cooperativa precisa ser administrada com um único objetivo; o crescimento de
todos.
-
Mas isto é impossível. Os interesses estão acima de tudo. Não vejo saída Você
está numa enrascada. Todo dia surgem novidades. Lembre-se que a cooperativa tem
muitos sócios. Administrar sozinho é impossível. Novos sócios irão surgir com
soluções as mais miraculosas possíveis. Para os projetos saírem do papel você
irá precisar da aprovação e consenso deles. Diga-me a verdade, você tem saída?
-
Tenho. Vou investir com todas as forças. Se perder a esperança a administração
será um fracasso.
-
Não seria melhor entregar o cargo?
-
De jeito nenhum. O compromisso assumido me impede. Tenho de renovar a crença.
Eles precisam ver a cooperativa em pleno progresso.
-
Carlos, já está na hora de mudar. Seja contundente, mais ousado. Desagrade a
alguns, mas cumpra o prometido. Arme-se de coerência. Um pulso forte nestas
horas é preciso. Lembre-se que muitos estão esperançosos. Não os desiluda.
-
Isto é tudo o que não desejo. Deus irá me ajudar na escolha dos novos sócios.
Se errar desta vez, será o caos.
-
Serei sincero com você. Se desta vez cometer qualquer falha pode abandonar a
cooperativa ou eles lhe crucificarão vivo.
* * *
Perpétua
Tudo
tem um motivo de ser. Nada acontece por acaso.
O céu em poucos
minutos escurecera. As estrelas brilharam na falsa noite quando o sol na autoridade
de rei permitiu a lua lhe fazer sombra; sinal de agouro entre muitos, inclusive
Lúcio Lucas Leão que naquele momento, recebia notícias de Perpétua:
- Pai, eu não entendo Deus. Onde Ele está numa hora desta? Se Perpétua morrer eu nunca O
perdoarei.
- Lucas, entender os nossos
semelhantes já é difícil, imagine as coisas Divinas. Meu filho, você é jovem,
tem muito o que aprender, não As questione. Tudo tem um motivo de ser. Nada
acontece por acaso.
- Isto não é justo.
Enfurecido saiu da
sala resmungando, respirava ódio. Nunca aceitava um assunto sem antes discuti-lo
até entender as razões expostas. Depois as defendia quaisquer que fossem as
conseqüências.
No dia seguinte, foi
até a casa de Perpétua. Na porta do quarto parou e ficou a observá-la sentada
na cama. Distraia-se com os pardais que pulavam de galho em galho na alegria da
liberdade. A doença interferia nas horas, nos minutos, nos segundos tornando-os
mais velozes; o tempo espremido. As forças do vigor da vida pareciam minguar.
Rosto pálido, olhos envoltos por anéis escuros, lábios secos. Ainda assim continuava
bela:
- Perpétua, posso entrar.
- Lucas! Mais claro que pode, entre, sente aqui perto de
mim.
- Trouxe umas coisas pra você, não sei se acertei seu
gosto, mas me esforcei.
- E acertou mesmo. Adoro biscoitos, flores. Onde
conseguiu estas rosas amarelas, são tão difíceis por aqui! Elas são lindas.
- Com um japonês que agora apareceu no mercado novo.
- Lucas, você pode chamar a enfermeira pra mim. Eu quero
colocá-las num jarro. Espero que durem bastante. Depois você me coloca na
cadeira para irmos até o jardim.
Entre um e outro
canteiro ela comentava:
- Antes de adoecer todos os dias aguava as plantas.
Gosto de sentir o
cheiro das flores, da terra úmida. São cheiros que nos faz lembrar o passado, cheiros
da infância. Lucas, você também gosta de observar a natureza?
- Gosto, e ao seu lado mais ainda.
- Tem sido tão bom comigo. A única coisa boa que esta
doença me trouxe foi você. Gosto de estar ao seu lado. Quando melhorar, iremos
passear.
- Sim, iremos à praia.
- É mesmo. Estou muito branca. Preciso tomar sol. Depois
que adoeci poucos minutos fico aqui no jardim.
- Os colegas vieram vê-la?
- Não, só você. Acho que eles têm medo de mim.
- Que besteira, Perpétua. Não vieram porque, quase todos,
ficaram em recuperação. Eu e mais uns quatro ou cinco tivemos sorte, passamos
direto. Por isso estou aqui.
- Deixe pra lá. Hoje nada estragará meu dia. Quer namorar
comigo?
- É tudo o que desejo. Aguardava uma oportunidade para
lhe dizer o quanto gosto de você.
Curvado sobre a
cadeira de rodas a beijou. Os olhos de Perpétua se encheram de lágrimas:
- Você costuma rezar?
- Para que falar nisso?
- Eu quero me curar. Eu quero viver.
Embora o céu
estivesse sem nuvens e o Sol forte, as mãos de Perpétua estavam frias.
Precisava sair dali o mais rápido possível. Ela continuava falando. A voz se
distanciava cada vez mais, porém ele nada entendia. E, levantando a voz ela
disse:
- Lucas, você está me ouvindo?
- Desculpe. Estava distante, pensava no trabalho que
ainda hoje tenho que fazer para ajudar um colega. Ele também vai fazer
Medicina. Perpétua, eu preciso ir. Amanhã voltarei nesta mesma hora. Agora,
deixe-me beijá-la.
Com muito esforço
consegui levantar o corpo e o beijou:
- Obrigada por tudo, Lucas.
-Não há motivo para me agradecer. Amanhã estarei aqui.
O trabalho de química para o colega foi
concluído naquele mesmo dia. Agora quanto mais estudava mais vontade tinha. Ser
médico tornara-se uma obsessão. Problema difícil, sinônimo: desafio.
Desligar-se de uma questão só com a resposta certa. Um campo aberto para a
intromissão do cansaço, do stress. Precisava parar. O relógio bateu meia-noite.
Um arrepio seguido por um aperto no coração trouxe a lembrança de Perpétua.
“Será que dormiu ou está acordada, cheia
de dores? Paciência, minha querida, em breve ficará boa. Aparecerá um modo de
curá-la. Se não for Deus, será um mortal que tornará seus dias mais
confortáveis, mais cheios de vida. Para isto, resista. Não se entregue, não se
deixe levar pelo desespero. Encontre na doença força. Lute em defesa da vida.
Pense em quanto ainda tem para desfrutar e perpetuar sua existência.”
A noite foi
angustiante. Na hora do café, o pai
aproximou-se devagar:
- Lucas, não tenho boas notícias.
-
Perpétua?
- Sim. Ontem à noite.
De cabeça baixa
escutava o que ainda seria dito para machucar, ferir o corpo e a alma.
- Pelo menos deixou de sofrer. Soubemos há pouco.
O desabafo veio
forte:
- Por que meu Deus? Por que tirar uma vida tão jovem. Nem
quinze anos completos tinha! Que pecados poderia ter?
Saiu da sala sem
levantar a vista. Estava desiludido, ofendido, abatido. Queria vê-la,
segurar-lhe a mão. Com isso, quem sabe ela não ganharia um pouco de segurança
na viagem sem volta. O sangue fervia, formigava o corpo e permitia o ódio
incendiar a alma. Sem se conter deixou vir a explosão: “Se é tão poderoso como
dizem por que não sai em defesa dos necessitados? Onde está SEU coração? Deixar pessoas inocentes morrerem? Trazer infelicidade
aos que ficam? Isto não é comportamento Divino.
Porque é DEUS acredita que pode
fazer isto? Desta forma também serei UM.
Eu me preocupo com os outros. Dedicar-me-ei ainda mais à medicina para LHE provar que sou mais humano. A
minha vida pertencerá aos meus semelhantes. Quero proporcionar-lhes mais
conforto, mais felicidade, mais paz de espírito.
O caminho para casa foi pela Avenida
Beira Mar. Precisava de ar puro. A maré baixa convidava a caminhar sem sapatos.
A umidade e frieza da areia massageando os pés, diminuindo as tensões. O Sol
logo nasceria. Pouco a pouco o negro da escuridão cedia à cinza, à prata, à
luz. Luz que vinha com força, com brilho, de meio dia, de um verão sem nuvem.
Estava difícil desviar os olhos daquele esplendor. Atordoado, ouvindo uma voz,
caiu de joelhos com a mão nos olhos:
“Lucas, Lucas, o que queres provar? Por que
me desafias? A dúvida é tua inimiga. Fazes a tua parte. Não te preocupes em
fazer mais do que podes. Eu
cuidarei a partir de onde ficares.”
Outras vozes castigaram o silêncio do
culpado:
-
Mateus, aquele não é Lucas, que está ali deitado na areia.
-
Parece. Vamos lá.
-
Lucas, o que faz aqui? Precisa de ajuda?
-
Não. Estou bem. Foi só um cochilo. Coisas do cansaço.
-
Amigo é perigoso dormir aqui sem ninguém por perto.
-
Eu sei, obrigado.
-
Até outra hora, Lucas.
-
Até, mais uma vez obrigado.
-
De nada. Se cuida rapaz.
A manhã se instalou. Trazia o sol limpo
a iluminar tudo em que seus raios tocavam. No caminho de casa as palavras
continuaram a soar vivas num tom forte e melodioso.
Naquele dia a concentração no trabalho
estava difícil. Pela primeira vez estava desanimado, sentia uma sensação de
vazio na alma. Seria melhor voltar para casa.
Na manhã seguinte veio o arrependimento:
“A Sua luz, a Sua voz,
Sua palavra, trás segurança, nos dá ânimo; Reforça o compromisso com a
responsabilidade. Queria agradecer-LHE pelo que nos permite fazer pelo
próximo. Suplicar-LHE-ia ainda,
sempre nos acompanhar na incansável busca para dar felicidade ao próximo.”
Ainda hoje vejo Perpétua sorrindo como
no primeiro e único dia de namoro.
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