Brilho da Escuridão
“A flor
do campo floresce apenas por uma hora e, no entanto, ela não difere em essência
do gigantesco pinheiro que vive uma centena de anos.”
Teitoku Matsunaga
Fim de tarde. Pedro e Paulo
desciam o Rio Sanhauá num pequeno barco. Era a hora de recolher os covos
deixados no dia anterior. A pesca conduzia tio e sobrinho numa aventura cheia
de surpresas.
A água cortada pelo barco
respingava obrigando-os a fecharem os olhos. A velocidade fazia a vegetação ribeirinha
tomar formas diversas. Sentiam-se soltos, livres.
Um pouco à frente reduziram o
motor. Precisavam deixar o curso principal do rio para entrar no emaranhado de
canais formados pelo mangue. As raízes aéreas lembravam estacas de cercas
vivas. Qualquer manobra indevida poderia por fim a aventura e a pescaria. Paulo
manobrava em zigue-zague, com cuidado, até chegar a um grande círculo formado
pela vegetação. Este era o lugar preferido para trocarem os covos. Para não
espantar os peixes, desligaram o motor. A embarcação deslizou em silencio no
comando do leme. Dos dez covos, cinco,
estavam vazios, mas, ainda assim, conseguiram alguns peixes. Entre eles um
camurim com quarenta centímetros. Gritos seguidos de palavrões se fizeram ouvir
quebrando o silêncio, afugentando os peixes.
- Paulo cala esta boca. Assim os peixes se afastarão.
- Esqueci tio.
O dia escurecera quando o último
covo foi instalado. A vegetação, antes verde, perdia a cor, misturava-se ao
cinza, ao preto, ao invisível, ao nada. O caminho da volta, estreito,
assombroso; aflorava o medo.
Pedro sentia a responsabilidade
pesar. Conduzir a embarcação por entre as raízes, que lembravam formas humanas,
com longas pernas e braços, era tarefa difícil. Havia necessidade de se
descontrair para não passar insegurança a Paulo:
- Nunca ficamos no escuro. Esta foi minha primeira
vez. No ano passado não foi assim. Quando chegávamos próximo ao ancoradouro
escureceu, lembra-se, Pedro?
- Não me diga que agora está com medo?
- Não, não estou. É que não enxergo nada. Você está
vendo alguma coisa?
- Não tenha medo, daqui a pouco se acostuma e vai
enxergar melhor. Conheço isto aqui como a rua que moro. Vamos já sair daqui.
Ao virar a chave, o motor não
pegou. Várias foram as tentativas mas sem sucesso:
- Vamos aguardar mais um pouco Paulo. O motor está
encharcado, tem gasolina demais no carburador. Enquanto não evaporar, não pega.
Agora que não temos o que fazer vamos olhar para o céu e tentar identificar as
estrelas, como fazia nosso avô, está lembrado?
- Estou sim.
- A noite vai ser das boas. Sem lua e sem nuvens do
jeito que está será divertido para descobrirmos os planetas e as constelações,
você vai ver.
O piscar das estrelas estava cada
vez mais forte. A cada momento surgia um novo ponto luminoso. O escuro estava
invadia claro: o brilho da escuridão tomava conta da noite:
- Pedro, por que as estrelas aqui brilham mais que na
cidade?
- A iluminação do povoado por aqui ainda é fraca.
Quem clareia é a luz das estrelas e a Lua, quando recebe luz do Sol. Está vendo
aquelas quatro estrelas em forma de cruz. A que fica entre o braço direito da
cruz e a de baixo é bem menor do que as outras. Está vendo?
- Estou.
- Chama-se “Intrometida”. Juntas, formam a
constelação “Crucis”. Aqui no Brasil é conhecida por “Cruzeiro do Sul”. Se você
imaginar uma linha reta, saindo da estrela mais baixa até o ponto de encontro
com a Terra, você encontrará o Sul. É muito importante saber disso. Ela serve
para nos orientar sobre os quatro Pontos Cardeais, ou seja: onde fica o Norte o
Sul, o Leste e o Oeste. É muito útil para quem gosta de navegar ou fazer
explorações nas matas.
- Como é que vou saber pra que lado fica o Leste e Oeste?
- Ah! É muito fácil. Se ficar de costas para o Sul, a
sua frente ficará o Norte, à direita o Leste e a esquerda o Oeste. Entendeu?
- Entendi.
- Está vendo aquele outro punhado de estrelas. Um
pouco mais para o Oeste. Está vendo?
- Estou.
- É outra constelação. Chama-se “Escorpião” por ter a
forma de um grande escorpião.
- Estou vendo, não.
- É difícil de ver. O Cruzeiro do Sul é mais fácil.
Deite-se no barco. Continue a olhar para o céu. Vou lhe contar uma história
enquanto a gasolina vai secando:
“Certa vez um menino saiu com o
seu cão para um passeio de barco. Ao chegar num local como este, desligou o
motor, ancorou a embarcação e foi pescar de anzol. O silêncio e o calor da
tarde, foram suficientes para fazê-lo adormecer em sono profundo. Então sentiu
que seu corpo deixava o barco e flutuava em direção às estrelas como se
estivesse voando, subindo no espaço. Cada vez distanciava-se mais da terra. De
repente olhou para baixo e se espantou. Ele continuava no barco com o seu cão,
viu as margens do rio, viu a vegetação de mangue que se espalhava pela região e
ficou nervoso. Voltou a olhar para cima. Queria ter a certeza de que ainda
voava. Tornou a olhar para baixo. Desta vez o barco estava menor do que a palma
da mão. As margens do rio e toda as praias estavam bem definidas. A medida em
que demorava em observar um detalhe, os outros já vistos, minutos antes,
tornavam-se menores. Chegou um momento que deixou de ver o rio, de se ver, de
ver o barco, o cachorro. Via apenas uma bola azulada. Era a terra vista do
universo. E teve uma sensação de ser uma nave espacial em pleno universo onde
meteoros, cometas, constelações passavam a sua frente. Ficou deslumbrado e
temeroso ao mesmo tempo. Sentiu medo, pavor. Voltou a olhar para baixo e, numa
velocidade assombrosa começou a descer, a perder altura. Avistou de novo a
Terra, o mapa das Américas, o do Brasil, o rio, as margens, o barco, o cão e
ele mesmo. Assim como num filme ele voltou ao tamanho real. Preocupado olhou
para todos os lados e em dado momento sentiu a palma da mão quente e olhou para
ela. Viu, então, os poros crescendo. O sangue correndo dentro das veias. E de
novo teve a sensação que deslizava num barco em um rio de águas vermelhas. O
barco percorria os canais que eram as veias, as artérias. As vegetações
avermelhadas, amareladas, raízes densas, raízes aéreas cheias de cavernas a se
abrir e fechar num movimento contínuo o deixava atordoado. De repente a água
vermelha escura do rio, cedeu lugar a vermelha, escarlate. Então ouviu um
barulho forte seguido de uma cachoeira de água de diversas cores como um
arco-íres que o levou a outro lugar. Era como o céu. Estrelas, planetas,
constelações tudo minúsculo, tudo reduzido. Tão bonito como o que viu minutos
antes. E não se contendo disse: Tem um céu dentro da gente? E acordou.
- Paulo, você escutou? Não acredito!
- Hein! O que?
- Ah! Deixe pra lá.
* * *
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