Livre das Sombras
. A constante renovação mantêm a chama da vida acessa.
Celeste recolhida no quarto rezava em silêncio
diante do oratório. A imagem do Sagrado Coração de Jesus iluminada pela chama
da vela era a confidente das alegrias e tristezas; dos pedidos e dos
agradecimentos. Ao terminar a prece, ainda de coração doído, disse: Meu Deus,
por que as coisas da vida mudam com tanta rapidez? Apesar de estar distante do
oratório e ter fechado portas e janelas a chama da vela tremulou sem que ela percebesse.
De repente escutou uma voz:
- A vida é
assim mesmo. Não reclame, aproveite o momento, o agora, porque jamais será o
mesmo. Não faça o que eu fiz. A constante renovação das atitudes manterá a
chama da vida acessa.
Sem entender o que se passava, chamou pelo nome
do marido.
- Euclides?
Emocionada, com as lágrimas escorrendo, olhou
em todas as direções. Por alguns segundos a razão foi dominada. Aquelas
palavras pausadas, de som grave, davam-lhe a certeza de que ele estava ali. O
coração acelerado dificultava o entendimento e a impedia de raciocinar. Com
muito esforço conseguiu controlar a respiração, mas a lembrança do sepultamento
se instalou. Não se conteve:
“Há sete dias nesta mesma hora estávamos
juntos. Hoje cada um no seu mundo. Não tem sentido o que ouvi. Uma noite em
claro deixa qualquer pessoa esgotada. Eu devo ter cochilado. Foi isso.”
A chama estremeceu para um lado, para o outro e
o quarto encheu-se de luz: Meu Deus o que está acontecendo? De onde vem este brilho
tão intenso? Sentiu um arrepio. Passou
as mãos nos braços como quem se aquece e de novo ouviu:
- Me perdoe.
Recebi mais do que dei. Na minha vontade de viver fugi da tolerância, da
compreensão, do amor. Estava tão perto e não consegui segurar por mais tempo a
felicidade. Fui um tolo. Ela me abandonou deixando a morte executar a tarefa.
Agora só resta a despedida. Não posso levar o sabor dos teus lábios, a maciez
da tua pele e o perfume do teu corpo. Estou pronto para te deixar. Deixar esta
casa. Seguirei outro caminho na imensidão do Universo. Se algum dia me for dada
a chance de escolher, pedirei para voltar a ficar contigo, se assim o quiseres.
Afogada nas lágrimas do arrependimento, sem
tirar os olhos da imagem de Cristo, Celeste viu a luz perder a intensidade e a
chama se apagou. As folhas de papel sobre a escrivaninha, açoitadas voaram pelo
quarto espalhando-se pelo chão. Dominada pelo sentimento de quem lutou contra o
tempo numa batalha travada e perdida procurou afastar a angústia dirigindo-lhe
a palavra:
“Morrer não será um problema. Você conseguiu
ficar livre das sombras.”
* * *
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