terça-feira, 11 de março de 2014

                                      Livre das Sombras

.                                                                                           A constante renovação mantêm a                                                                                               chama da vida acessa.
  
Celeste recolhida no quarto rezava em silêncio diante do oratório. A imagem do Sagrado Coração de Jesus iluminada pela chama da vela era a confidente das alegrias e tristezas; dos pedidos e dos agradecimentos. Ao terminar a prece, ainda de coração doído, disse: Meu Deus, por que as coisas da vida mudam com tanta rapidez? Apesar de estar distante do oratório e ter fechado portas e janelas a chama da vela tremulou sem que ela percebesse. De repente escutou uma voz:
- A vida é assim mesmo. Não reclame, aproveite o momento, o agora, porque jamais será o mesmo. Não faça o que eu fiz. A constante renovação das atitudes manterá a chama da vida acessa.
Sem entender o que se passava, chamou pelo nome do marido.
- Euclides?
Emocionada, com as lágrimas escorrendo, olhou em todas as direções. Por alguns segundos a razão foi dominada. Aquelas palavras pausadas, de som grave, davam-lhe a certeza de que ele estava ali. O coração acelerado dificultava o entendimento e a impedia de raciocinar. Com muito esforço conseguiu controlar a respiração, mas a lembrança do sepultamento se instalou. Não se conteve:
“Há sete dias nesta mesma hora estávamos juntos. Hoje cada um no seu mundo. Não tem sentido o que ouvi. Uma noite em claro deixa qualquer pessoa esgotada. Eu devo ter cochilado. Foi isso.”

A chama estremeceu para um lado, para o outro e o quarto encheu-se de luz: Meu Deus o que está acontecendo? De onde vem este brilho tão intenso? Sentiu um arrepio.  Passou as mãos nos braços como quem se aquece e de novo ouviu:
- Me perdoe. Recebi mais do que dei. Na minha vontade de viver fugi da tolerância, da compreensão, do amor. Estava tão perto e não consegui segurar por mais tempo a felicidade. Fui um tolo. Ela me abandonou deixando a morte executar a tarefa. Agora só resta a despedida. Não posso levar o sabor dos teus lábios, a maciez da tua pele e o perfume do teu corpo. Estou pronto para te deixar. Deixar esta casa. Seguirei outro caminho na imensidão do Universo. Se algum dia me for dada a chance de escolher, pedirei para voltar a ficar contigo, se assim o quiseres.

Afogada nas lágrimas do arrependimento, sem tirar os olhos da imagem de Cristo, Celeste viu a luz perder a intensidade e a chama se apagou. As folhas de papel sobre a escrivaninha, açoitadas voaram pelo quarto espalhando-se pelo chão. Dominada pelo sentimento de quem lutou contra o tempo numa batalha travada e perdida procurou afastar a angústia dirigindo-lhe a palavra:
“Morrer não será um problema. Você conseguiu ficar livre das sombras.”


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