Sermão
da Verdade
“Quando a gente se liberta
dos nossos medos,
nossa presença liberta os outros.”
Nelson Mandela - 1994
-
... esta é a verdade, Tobias
-
Você quer dizer, sua verdade, não é?
-
Não, o que eu disse está na Bíblia.
-
Você falou do jeito que está escrito. Será que decorou porque não entendeu ou
tem medo de dar sua opinião.
-
Nem um nem outro. O que está na Bíblia é o certo.
-
Ah! Deixe pra lá, esta conversa não tem futuro.
-
Espere, desarme-se. Não entendo você, Tobias, se não acredita em Deus, por que
estuda Teologia?
-
O que tem a ver? Isto tem importância?
-
Tem sim.
-
Posso ser ateu, mas o que me disse pode ser ou não verdade. Nem tudo que está
na bíblia é o que você entende. Os textos foram escritos em forma de metáforas.
Eles dão asas a imaginação.
-
Vamos mudar de assunto que é melhor.
Enquanto isso,
um homem de paletó e gravata borboleta que estava sentado no mesmo banco da
praça que eles lia um grosso livro de capa preta. Ao pressentir que a conversa
chegara ao fim, dirigiu-lhes a palavra:
-
Perdão rapazes. Posso fazer algumas considerações sobre o que discutiam?
-
Por mim tudo bem. - Respondeu
Tobias. Adauto baixou a cabeça e nada comentou.
-
Para que melhor entendam o que vou dizer, farei um breve comentário sobre a
história do homem que há muito busca a verdade. A princípio imaginava que se um
dia a conhecesse seria poderoso. E, utilizando-se da força física, tentou impor
o que considerava verdadeiro. Tornou-se respeitado, feliz. No entanto, algo
continuava a inquietá-lo. Na tentativa de sanar a angústia, descobriu que o
poder financeiro em algumas pessoas proporcionava uma vida alegre, sem traumas
aparentes. Partiu, então, para uma nova experiência; ter dinheiro, ter poder, ser
respeitado. Não demorou muito para a insatisfação voltar. O domínio pelo seu
semelhante não preenchia o vazio como imaginara. Observou que a felicidade não
dependia apenas de poder e sim de valores agregados à formação da personalidade
de cada um.
-
Conforme as conveniências? É a isto que você quer chegar?
-
Sim Tobias, até certo ponto sim. No início, por depender da educação recebida.
Depois, cada um assimilava ao seu modo. O pensar e o agir são pessoais. A
felicidade se aproxima ou se afasta de acordo com os valores que cada um
agrega. Para se adquirir momentos de felicidade é necessário conhecer-se a si
mesmo a fim de identificar as alegrias e tristezas que foram responsáveis pela
formação da personalidade. Com isto, rapazes, a verdade de cada um se tornará
explicita. Às vezes até única. Vocês têm razão no que defendiam. Continuem
discutindo o assunto e irão notar que as verdades se aproximam. Nunca pensem que
ela será única ou igual. Os caminhos, embora distintos, conduzirão a um
entendimento porque a base da discussão é a mesma. Desculpem-me por ter falado
tanto. Sempre me entusiasmo e esqueço que esta é a minha verdade e não a de
vocês. Até outra hora. Foi um prazer conhecê-los. Em breve nos veremos na
faculdade.
-
Graças a Deus ele se mandou. Tobias, ele ensina mesmo o que?
-
Sei lá. Se for professor pelo menos seja do último período. Já pensou quando
ele falar sobre a ressurreição?
No corredor da
faculdade encontraram-se com alguns conhecidos e se informaram da sala em que
teriam a primeira aula de Teologia. Os colegas responderam que já estava na
hora. Fossem rápidos, pois o professor não tolerava alunos que chegassem
atrasados. Logo aceleraram os passos e viram apenas duas cadeiras vazias no
final da sala. Naquele momento o professor, de livro da capa preta na mão,
paletó e gravata borboleta acabava de entrar cumprimentando os alunos. Tobias e
Adauto se entreolharam:
-
Bom dia a todos. Meu nome é Elias. Não o profeta, mas um seguidor de suas leis.
Vocês já devem ter ouvido falar do meu método. Muitos aqui nesta sala são
veteranos. Acredito que devem gostar muito da matéria que ensino. Um fato é
certo: prestou atenção tem condições de entender o assunto. Mais uma vez Tobias
e Adauto se entreolharam:
-
Vocês dois aí no meio da última fila, por exemplo, já tiveram a oportunidade de
conhecer um pouco do que acredito ser “o conceito da verdade”, não é mesmo?
Os dois
balançaram a cabeça em sinal de aprovação.
-
Você, Tobias... É este mesmo o seu nome?
-
Sim, senhor.
-
Pois bem, ouvi um pouco do que conversavam na praça sobre a verdade da Bíblia.
Entendi que você explicava para o seu amigo que uma verdade pode não ser única.
Tudo depende da forma de entendimento de cada um, foi isso mesmo o que queria
dizer?
-
Sim, senhor.
-
Pois bem eu continuarei o assunto a partir daí. Depois da aula os demais alunos
irão lhes procurar. Passem para eles o entendimento de vocês. Nesta aula
inaugural vou falar das necessidades do homem que desde os tempos primórdios
procura entender os mistérios da vida. Com o domínio da escrita, tornou-se mais
fácil registrar as diversas teorias do nascer e morrer, do ato de amar e de
dominar o próximo. Entretanto, continua até hoje sendo o seu maior obstáculo, o
entendimento da felicidade e do amor...
-
Adauto não vou agüentar este assunto até o final da aula!
-
Cala a boca, Tobias, ele não tira os olhos da gente.
...o homem
utilizando-se da liderança, como primeira alternativa, conseguiu obter
satisfação pessoal. Por determinados momentos sentiu-se em paz consigo mesmo e
respeitado pelos demais. Com o passar do tempo foi descobrindo que não era a
liderança, o domínio de seu semelhante o que lhe dava satisfação. E partiu para
uma nova busca. Observou que os afortunados, os que detinham bens materiais,
viviam alegres. Até certo ponto o poder financeiro lhes assegurava melhores
condições de vida. Depois vieram as discórdias, as brigas, as batalhas para adquirirem
mais terras, ampliar o seu reino, dominar o povo.
Passado uns
tempos novamente sentiu-se vazio. Percebeu que a tentativa em busca da
felicidade estava frustrada. Não era o domínio dos seus semelhantes nem de suas
terras que alimentaria o ego. A satisfação pessoal não dependia dessas ações.
Pensou, então: “Será que depende do conhecimento e domínio dos valores que cada
ser possui?” Viu-se então impulsionado a saber o que motivava a alegria e a
tristeza. “Será que existe alguém totalmente feliz? Alguém totalmente triste? Quais
os valores que trazem felicidade ou tristeza? Como conhecê-los se divergem em
cada ser humano? Será que no mundo existem duas pessoas que pensam igual?” E
novamente veio a idéia de procurar entender o seu interior, e a formação de sua
personalidade.
Com o
conhecimento de si mesmo, o homem continuou a ter momentos de alegria e de
tristeza. Nesta luta para desvendar este mistério notou algo mais que um
simples conhecimento de si mesmo. Seria necessário
se aprofundar nos livros os mais diversos na tentativa do descobrir a
verdadeira razão da sua existência...
-
Eu não acredito que ainda estou aqui.
-
Cala a boca, Tobias. Vamos esperar e ver onde ele quer chegar.
-
É muita besteira numa só aula.
-
Ele está olhando pra gente.
-
Tobias, você tem mais momentos de alegria ou tristeza?
-
Professor, eu nunca me preocupei com isso. Tem dias que não estou tão
satisfeito, mas logo passa.
-
Este é um dos males dos jovens. Não se preocupam em conhecer-se enquanto é
tempo. Mas, continuando, o homem encontrou nas leituras um denominador comum.
Profetas, escritores, filósofos escreveram sobre o amor. Esse sentimento está
registrado nas mais primitivas formas de expressão. Entretanto não foi
suficiente para explicar a inquietação humana. Era preciso entender quais as
conseqüências advindas do amor e como proceder para adotá-lo como princípio
único e fundamental de vida.
Diante deste
desafio, recorrendo mais uma vez ao estudo, concluiu que o melhor caminho para
o amor estava contido na frase: “Amai ao próximo como a ti mesmo”. E procurou o
sentido de cada palavra nesta frase para as mais variadas formas de concepção
de Deus. Observou que ora admitia uma entidade extrínseca, ora intrínseca, ao
ser humano. Daí em diante começou a divergir de seus semelhantes. Os caminhos
escolhidos tinham de ser únicos. Só existia um caminho porque a verdade era
única. Com isso surgiram os Iluminados, aqueles de grande sabedoria, fé e
domínio dos ditos poderes espirituais e paranormais, que os destacavam, os
tornavam líderes. Não demorou muito para centenas, milhares, milhões de
seguidores defenderem as verdades apresentadas como únicas. Estava criada a
diversificação da verdade, estava criada a religião. E em nome de Deus os
homens começaram a se desentender...
-
Mas que aula chata, Adauto. Acho que ao sair daqui vou trancar meu curso.
-
Cala esta boca. Está chamando a atenção dele, prepare-se que ele vai fazer mais
perguntas.
...cada facção
defendia a sua história, os seus dogmas, sem admitir, por hipótese alguma,
argumentos contrários, por mais lógicos que fossem. Desencadeou-se em nome de
Deus, verdadeiras batalhas e perseguições àqueles que desobedeciam as crenças e
dogmas adotados em aldeias, tribos. Até mesmo em países ditos, na época, como
os mais adiantados.
Com grande temor do que poderia acontecer sobre as
discórdias ele pensou: “O que preciso para falar com Deus.” Lembrou-se, então,
que a concepção do seu Deus é influenciada pela cultura e os valores pessoais
da formação do seu caráter. E, começou a questionar: “Meu Deus é algo distante
de mim ou está dentro de mim porque faço parte do Universo como uma partícula
do todo?” De uma ou outra forma, acreditava na existência de um Criador. E, a
principal meta era amar a Deus acima de qualquer coisa. Para isto seria preciso
conhecer algumas outras diretrizes para alcançar o que pensara. “Poderei amar a
Deus se não consigo amar a mim mesmo?” O homem dominado por esta dúvida tentou
visualizar que motivos o conduzia a esta atitude. Fez, então, uma análise dos
fatos marcantes de sua vida. Anotou as datas prováveis das ocorrências,
ponderou os fatos significativos e, deparou-se surpreso; tinha muito a fazer
para modificar o seu modo de pensar e agir até consigo mesmo. Só assim melhor
se conheceria e quem sabe talvez pudesse fazer parte do Criador. Desta forma,
jamais poderia deixar de amar a si mesmo. Com esta compreensão estava criada a
segunda pergunta: “Como posso amar ao próximo como a mim mesmo se não o
conheço?” Diante desta questão tão complexa para um mundo que gira em função de
conceitos e normas variáveis para cada país, o homem se viu numa encruzilhada. “Ou
me aproximo do meu semelhante, para melhor compreendê-lo ou não farei parte do
Criador.” Foram várias as tentativas. De certa forma alguns conseguiram. Mas a
maioria foi movida pela inveja. Inveja que gerou rivalidades. Cada um agia
individualmente, embora estivesse numa sociedade com regras e normas iguais
para todos. A concordância virou hipocrisia.
Foi utilizada apenas para adquirir favor em troca. E o amor ao próximo cada
vez mais se distanciou.
Por hoje é só.
Na próxima quinta feira, neste mesmo horário, a aula será sobre um trabalho de
vocês e sobre as chances que vemos para conseguir uma união justa, honesta e
com uma melhor distribuição de renda entre todos dentro do espírito do que lhes
falei. Espero que formem grupos de cinco. A quantidade de folhas A4 é de no
mínimo seis. Os dois lados da folha devem ser utilizados.
Tobias e
Adauto ao saírem se encontraram com uns conhecidos que também cursavam
Teologia. E entre uma conversa e outra, surgiu o assunto:
-
Tobias, você gostou da primeira aula?
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Pra dizer a verdade, não.
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Então já sei que foi a do professor Elias.
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Como sabe?
Amigos, vocês
caíram num trote.
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Trote? Ele não é professor?
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Que nada, ele é estudante. Há cinco anos vem tentando passar, coitado, mas não
consegue. Aposto que falou sobre a verdade, sobre o homem, Deus, Universo, não
foi?
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Foi isso mesmo.
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Todos os anos ele pega os novatos com esta historia que chamamos “Sermão da
Verdade”
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Por que a Universidade permite uma coisa destas?
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Na próxima aula vocês vão receber as orientações do coordenador do curso e uma
dos assuntos é sobre aceitar sem questionar. Algum de vocês interviu nas
ponderações dele?
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Claro que não.
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Neste curso são mais do que necessários os questionamentos.
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Não sei porque me meti nisso!
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Tem calma, Tobias. Você vai ser um iluminado quando terminar o curso.
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