Som do Adeus
“...desejo também que nenhum de seus
afetos morra...”
Victor Hugo
Nuvens
de chumbo escondiam o sol. Era um típico dia londrino onde a depressão se anuncia,
marca presença.
Roberto
e Eunice, dez anos de casados, três filhos, acabavam de acordar.
O carinhoso bom dia de antes cedera lugar a um “oi”
acompanhado de; “hoje será um dia cheio, nem quero pensar no que tenho a fazer;
eu também.”
A força aglutinadora do início de vida a dois, o sexo,
perdia a intensidade, traçava o lado frio da curva do entendimento. As
obrigações para com o trabalho ocupavam todos os espaços e, espremia o tempo. Predominavam as leis da sobrevivência, da aquisição do patrimônio, da garantia de uma
velhice amparada e digna cegando, negando e se opondo ao crescimento do casal.
Nos fins de semana, o exercício da profissão os afastava.
Ele jornalista, ela médica. As reportagens e os plantões os conduziam a lugares
distintos. Nos desencontros o tempo passava e os impedia de se darem conta de
que o diálogo, quase ausente, deixara de contribuir para a substituição da
paixão pelo amor ou amizade.
Juntos, no entanto solitários. Presenças ausentes. Um vasto
campo para a aceitação da rotina que, na espreita, aguardava a oportunidade
para agir forte e resoluta.
Diante deste obstáculo, procuraram uma saída, definiram um
objetivo: trabalhar, trabalhar, trabalhar. Queriam ser reconhecidos pelos seus
superiores. Talvez, assim, conseguissem predeterminar um mesmo período de
férias. Chances existiam. E, esperançosos, trabalharam até atingir a meta:
- Eunice o que
acha de marcarmos nossas férias para abril?
- Por que abril
e não julho que é o mês de férias dos meninos?
- Abril é baixa
estação. Poderemos economizar um pouco.
- Lá vem você
com suas economias. Já combinamos o que gastar, para que reduzir?
- Eunice, não é
esta minha intenção. Quem disse que eu quero economizar na viagem. Me refiro às
despesas com hotéis e excursões. Se deixarmos para escolher na hora gastaremos menos. Com isso sobra para
comprarmos mais.
- Você esqueceu
que existe uma cota que não podemos ultrapassar?
Não, de jeito nenhum.
- Então,
Roberto, esqueça as economias e vamos aproveitar do melhor enquanto temos
saúde.
Os primeiros dez dias tudo foi motivo de alegria e
excitação. Os passeios diurnos aos logradouros públicos os enchiam de
curiosidade:
- Roberto, não
é uma beleza esta escultura de Rodin?
-
Extraordinária. Esta parte da pedra sem acabamento dá a impressão que a mão
continua imergindo, tomando forma.
- Eu não vejo
assim, apesar de achar bem feita. Acredito que ele parou aí por achar que
estava pronta.
- Não, Eunice.
Segundo os estudiosos, ele utilizava esta técnica com o propósito de deixar o
espectador livre para imaginar a peça como bem entendesse.
- Para mim uma
obra desta tem que ter forma, estar acabada, polida.
- Eunice, ele
considerava as obras terminadas quando sentia ter atingido a finalidade a que
se propôs. Foi assim a participação dele para o impressionismo. Essas atitudes
rebeldes contribuíram para quebrar os preconceitos e certas convenções da
época.
Daí em diante se entenderem melhor. A viagem foi de momentos
agradáveis. O entusiasmo aliviara as tensões liberava o sexo que reaparecia
como apaziguador dos conflitos e animador do casal. Quando voltava os
desentendimentos, tornavam a viajar. Conhecer novos lugares, novas emoções.
Ao retornarem, fotos, lembranças, visitas de amigos. Durante
meses, o vinho que os alegrava e permitia fugir do ócio. No entanto, aos poucos,
a animação arrefecia. Assistir programas de televisão amortecia o clima. Pouco
diálogo e, às vezes, alguns monólogos quebravam o cochilo. Raras eram as noites em que dormiam na mesma
hora e, quando acontecia, o cansaço imperava afastando qualquer iniciativa:
Eunice, no entanto não se sentia entregue e, num domingo,
quando coincidiram suas folgas:
- Vamos
conhecer as reformas do cais do porto, Roberto? Depois almoçaremos num
restaurante. Vamos sair de casa, essa rotina vai nos matar.
Sentados no banco na praça olhavam para o mar em direções
opostas. Ao largo um navio aia da barra. O apito sinalizava a partida,
tirava-os da letargia e os fazia pensar:
“Quantas pessoas estão ali? Será que a maioria está feliz?
O que estará pensando Roberto? Será que também olha para o navio.”
“É uma viagem de turismo, bem
que poderia estar ali com Eunice, aqueles jovens abraçados não param de rir, demonstram
estarem felizes.”
“Sinto-me como fosse aquela mulher solitária debruçada no
convés, parece que deixou alguém querido ou não tem com quem partilhar a
alegria. A tristeza vem quer estejamos acompanhados ou não.”
“Num casal,
a felicidade tem que ser mútua.”
O navio afasta-se do porto. Roberto e Eunice aos poucos viam
as pessoas diminuírem, perderem a nitidez, tornarem-se pontos no convés. As
águas escuras em forma de ondas quebravam no cais ao som do adeus que os trouxe
à realidade. Realidade de desencontros. Desencontros de opostos.
Calados se abraçaram e choraram. O navio seguia de mar
adentro em busca do destino.
* * *
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