terça-feira, 11 de março de 2014

                                          Som do Adeus

  “...desejo também que nenhum de seus afetos morra...”
                                                                          
 Victor Hugo


Nuvens de chumbo escondiam o sol. Era um típico dia londrino onde a depressão se anuncia, marca presença.
Roberto e Eunice, dez anos de casados, três filhos, acabavam de acordar.
O carinhoso bom dia de antes cedera lugar a um “oi” acompanhado de; “hoje será um dia cheio, nem quero pensar no que tenho a fazer; eu também.”
A força aglutinadora do início de vida a dois, o sexo, perdia a intensidade, traçava o lado frio da curva do entendimento. As obrigações para com o trabalho ocupavam todos os espaços e, espremia o tempo. Predominavam as leis da sobrevivência, da aquisição do patrimônio, da garantia de uma velhice amparada e digna cegando, negando e se opondo ao crescimento do casal.
Nos fins de semana, o exercício da profissão os afastava. Ele jornalista, ela médica. As reportagens e os plantões os conduziam a lugares distintos. Nos desencontros o tempo passava e os impedia de se darem conta de que o diálogo, quase ausente, deixara de contribuir para a substituição da paixão pelo amor ou amizade.
Juntos, no entanto solitários. Presenças ausentes. Um vasto campo para a aceitação da rotina que, na espreita, aguardava a oportunidade para agir forte e resoluta.
Diante deste obstáculo, procuraram uma saída, definiram um objetivo: trabalhar, trabalhar, trabalhar. Queriam ser reconhecidos pelos seus superiores. Talvez, assim, conseguissem predeterminar um mesmo período de férias. Chances existiam. E, esperançosos, trabalharam até atingir a meta:
- Eunice o que acha de marcarmos nossas férias para abril?
- Por que abril e não julho que é o mês de férias dos meninos?
- Abril é baixa estação. Poderemos economizar um pouco.
- Lá vem você com suas economias. Já combinamos o que gastar, para que reduzir?
- Eunice, não é esta minha intenção. Quem disse que eu quero economizar na viagem. Me refiro às despesas com hotéis e excursões. Se deixarmos para escolher na hora  gastaremos menos. Com isso sobra para comprarmos mais.
- Você esqueceu que existe uma cota que não podemos ultrapassar?
Não, de jeito nenhum.
- Então, Roberto, esqueça as economias e vamos aproveitar do melhor enquanto temos saúde. 
Os primeiros dez dias tudo foi motivo de alegria e excitação. Os passeios diurnos aos logradouros públicos os enchiam de curiosidade:
- Roberto, não é uma beleza esta escultura de Rodin?
- Extraordinária. Esta parte da pedra sem acabamento dá a impressão que a mão continua imergindo, tomando forma. 
- Eu não vejo assim, apesar de achar bem feita. Acredito que ele parou aí por achar que estava pronta.
- Não, Eunice. Segundo os estudiosos, ele utilizava esta técnica com o propósito de deixar o espectador livre para imaginar a peça como bem entendesse.
- Para mim uma obra desta tem que ter forma, estar acabada, polida.
- Eunice, ele considerava as obras terminadas quando sentia ter atingido a finalidade a que se propôs. Foi assim a participação dele para o impressionismo. Essas atitudes rebeldes contribuíram para quebrar os preconceitos e certas convenções da época. 

Daí em diante se entenderem melhor. A viagem foi de momentos agradáveis. O entusiasmo aliviara as tensões liberava o sexo que reaparecia como apaziguador dos conflitos e animador do casal. Quando voltava os desentendimentos, tornavam a viajar. Conhecer novos lugares, novas emoções.
Ao retornarem, fotos, lembranças, visitas de amigos. Durante meses, o vinho que os alegrava e permitia fugir do ócio. No entanto, aos poucos, a animação arrefecia. Assistir  programas de televisão amortecia o clima. Pouco diálogo e, às vezes, alguns monólogos quebravam o cochilo.   Raras eram as noites em que dormiam na mesma hora e, quando acontecia, o cansaço imperava afastando qualquer iniciativa:
Eunice, no entanto não se sentia entregue e, num domingo, quando coincidiram suas folgas:
- Vamos conhecer as reformas do cais do porto, Roberto? Depois almoçaremos num restaurante. Vamos sair de casa, essa rotina vai nos matar.
Sentados no banco na praça olhavam para o mar em direções opostas. Ao largo um navio aia da barra. O apito sinalizava a partida, tirava-os da letargia e os fazia pensar:

“Quantas pessoas estão ali? Será que a maioria está feliz? O que estará pensando Roberto? Será que também olha para o navio.”
  É uma viagem de turismo, bem que poderia estar ali com Eunice, aqueles jovens abraçados não param de rir, demonstram estarem felizes.”
“Sinto-me como fosse aquela mulher solitária debruçada no convés, parece que deixou alguém querido ou não tem com quem partilhar a alegria. A tristeza vem quer estejamos acompanhados ou não.”

 “Num casal, a felicidade tem que ser mútua.”

O navio afasta-se do porto. Roberto e Eunice aos poucos viam as pessoas diminuírem, perderem a nitidez, tornarem-se pontos no convés. As águas escuras em forma de ondas quebravam no cais ao som do adeus que os trouxe à realidade. Realidade de desencontros. Desencontros de opostos.
Calados se abraçaram e choraram. O navio seguia de mar adentro em busca do destino.



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